Resistir sem arrebentar a corda
uma reflexão sobre o quanto somos fortes através do livro "Nada pode me ferir"
"Eu era o único homem preto da minha unidade, o que me lembrava minha infância na zona rural de Indiana, e quanto mais difícil ficava o treino de autoconfiança aquática, mais subiam aquelas águas turvas, até parecer que eu estava me afogando de dentro para fora.", Nada pode me ferir, David Goggins
Na primeira vez que entrei em uma piscina para fazer aulas de natação, eu sentia tanto medo que não conseguia fazer nada além de existir naquela "imensidão" aquática. Estava com 34 anos e apesar de ser de Recife, uma cidade litorânea em que o verão se faz presente a maior parte do ano, não tinha aprendido a nadar. Até os meus 17 ou 18 anos meus pais não possuíam dinheiro para pagar por esse esporte. Quando prosperaram, já era uma jovem adulta e, dessa vez, mesmo com a verba, adiei esse começo o quanto pude. Todo ano estava lá na lista das metas - sim, as faço desde essa época - e meu pavor sempre vencia em nome de uma desculpa qualquer.
Precisei morar em São Paulo para ter coragem. A saudade foi o que me lançou na piscina. Me fazia muita falta a presença das águas da Veneza brasileira no ar úmido daquela cidade e as aulas passaram a ser uma ponte líquida com minhas origens. Precisei de algumas conversas na terapia para conseguir me soltar e mergulhar de forma uma atrapalhada que apelidei gentilmente de perereca perdida. Sigo tentando ser uma nadadora.
Contei esta anedota pessoal porque quando me deparei com a história da dificuldade aquática de David Goggins no seu livro, citada no comecinho deste texto, me surpreendi. Não esperamos ler sobre medo na biografia de um SEAL, explico já o que é isso, menos ainda se tratando de água. Me senti menos "esquisita" no mundo com essa e outras descobertas. Goggins é um homem negro, americano, com histórico de violências na infância e adolescência, acumula coisas que deram errado na vida. Adulto, se torna extremamente focado enquanto carrega as mágoas do passado. Nas páginas, abre o peito sobre ser quem é com a raça que tem, posicionamento também inesperado e muito bem vindo.
A leitura
Nada pode me ferir estava na minha mira há quase um ano, por indicação da Lu Ferreira, mas demorou até eu me sentir disposta a engajar naquelas páginas. Não é o tipo de livro que olharia na livraria e pensaria "uma boa ideia ler isso aqui". Embarquei porque a dica era boa e acompanhada de uma resenha voltada para algo que eu mesma estava pesquisando sobre: resistência e disciplina. Além disso, gosto de começar o ano com uma história de esperança e inspiração - em 2023 comecei com Michelle Obama, escrevi sobre aqui - e me pareceu promissor.
Bom, aviso que de fato não sei de nenhum ser humano mais resistente que ele e, sim, foi inspirador. Fiquei tão conectada com a história que li inúmeros trechos para meu marido e estou obrigando ele - e vocês - a ler também. risos O autor, como relatei, passa por muitos mais baixos que altos na vida e, diante deste contexto, decide entrar para alguma das forças armadas americanas. É um caminho, também muito usado por jovens de regiões periféricas no Brasil, para sair de uma vida miserável e dolorosa.
Isso não significa, no entanto, uma carreira fácil de construir. No caso de Goggins, primeiro ele tenta a Área e não funciona (isso não é spoiler) e isso impacta sua autoestima. Muitas lágrimas e sufocos depois, assiste na TV algo sobre o tal SEAL e pensa: é isso aí que eu quero.
O SEAL é um grupo de militares americanos dedicado às tarefas de maior periculosidade das Forças Armadas; foi uma equipe deles que capturou Osama Bin Laden, por exemplo. São considerados referência no mundo, dentro do universo militar, por terem um preparo não só físico como mental e de estratégia/inteligência impecáveis. Como as funções são arriscadas, o treinamento é extenuante - para preparar corpo e mente - a ponto da etapa um ter o singelo apelido de "semana do inferno"*. Apenas um em cada quatro participantes completa o treino e ganha o diploma para seguir e isso é só o começo. Imaginem o nível!
David faz três vezes a "semana do inferno" e passa por todos os outros treinamentos possíveis dentro das forças militares. Muitos deles na água, exatamente seu medo e sua fraqueza. Não satisfeito, decide participar de ultramaratonas (provas com no mínimo 60km, costumeiramente com mais de 100km), algumas no deserto e outras no gelo, e bater recordes de levantamento na barra. A leitura é de tirar o fôlego, há descrição das provas, dos cortes, da dor física e mental, da luta interna; o roteiro deixa ganchos de curiosidade sobre os próximos desafios, por isso, apesar de ser uma obra de mais de 300 páginas, terminei super rápido e passei na frente de outros livros. Aviso de antemão que não há nada sobre guerras em si ou descrições de batalhas governamentais.
As feridas
Pode soar estranho, mas a parte da dor é exatamente minha favorita. É raro alguém contar sobre o fundo do poço de forma honesta, ainda mais sendo homem - há relatos de depressão, choros compulsivos e afins - e de um grupo militar. "Eu já vira coisas suficientes para saber que o mundo era um lugar marcado pela tragédia, e que essa tragédia simplesmente continuaria a se empilhar aos poucos até me engolir." Por se reconhecer como um caso excepcional, Goggins, de forma certeira e justa, não conecta suas conquistas como efeito da meritocracia. Então, a resistência que eu buscava na história dele não vem de mais uma conversinha de quem acessou tudo - e venceu - porque o pai era amigo do amigo, sabe?
"Minhas lembranças do abuso sofrido nas mãos do meu pai e de todas aquelas pessoas que tinham me chamado de “crioulo” não evaporaram depois de umas poucas vitórias. Esses momentos estavam profundamente ancorados no meu subconsciente, e por causa disso meus alicerces estavam rachados." Não sofri violência física ou situações graves e não cabe aqui relatar minhas vivências familiares, mas o livro me fez lembrar dos registros das nossas experiências. Uma coisa que muitas vezes me obriguei a esquecer justamente tentando ser mais resistente.
Esta minha escolha, sei bem, não é só minha e nem é exclusividade do recorte de gênero ou raça. Temos uma cultura emocional e comportamental curiosa no Brasil e talvez seja semelhante no EUA, onde o autor está. Fingimos não estarmos feridos, enterramos no passado os massacres cruéis à minorias, fazemos de conta que somos um povo capaz de seguir em frente sem nem conversar sobre suas dores. Muitas vezes, há alguns anos, em pesquisas sobre otimismo e alegria, éramos destaque no mundo. Outras nações se perguntavam como isso era possível. A resposta é: fuga e alienação. A conta chega, no entanto. Hoje somos o povo mais ansioso do mundo, desde 2017, segundo pesquisas da OMS.
Nós dois, com suas respectivas grandiosidades e objetivos, nas aulas de natação e em outros espaços, estávamos reescrevendo uma narrativa, desfazendo traumas, construindo autoestima porque resistir nem sempre é fazer força para carregar muito peso nas costas. Sem dúvida alguma, também não é fingir que não está pesado.
Forte demais?
Depois de inúmeros capítulos sobre ser "casca grossa", como ele mesmo fala, e de dureza, vem uma reviravolta. Graças a uma fase de estado de saúde capenga, Goggins decide investigar seu corpo e se conecta com um grande detalhe: o alongamento. "A postura em pé ajudou a soltar meu quadríceps e alongar meu psoas – o único músculo que liga nossa coluna à parte inferior das pernas. Ele envolve a pelve por trás, comanda o quadril e é conhecido como o músculo da luta ou fuga. Como você sabe, minha vida inteira foi lutar ou fugir. Quando eu era uma criança pequena se afogando em estresse tóxico, sobrecarreguei muito meu psoas. O mesmo aconteceu durante minhas três Semanas Infernais".
A memória muscular dele não era só dos treinos intensos, do reconhecimento por seu porte atlético, era também de uma vida com muita tensão para vencer os próprios limites e, no começo, para sobreviver. Um lembrete sutil do livro é o quanto nosso corpo e mente estão conectados. Me lembrei que há alguns anos, nos meus estudos sobre bem estar, descobri que o alongamento é uma atividade de flexibilidade bastante recomendada para pessoas controladoras, ansiosas e com dificuldades de negociações, de trabalho ou familiares. Ao alongar as fibras musculares também ensinamos nosso cérebro algo como: pode relaxar.
No fim das contas, Nada pode me ferir, apesar do título, é sobre cura. Na prática, tudo pode nos ferir e a resistência, curiosamente semelhante à esperança, se fortalece quando a gente segue em frente carregando essas feridas e tratando delas, seja com um alongamento, uma ultramaratona ou dançando funk.
*Há críticas ao método se você pesquisar e não adentrei nesta questão pois não era o foco. Além disso, não é minha especialidade e entendo a questão do treinamento ser quase uma questão de preparo de sobrevivência. Por outro lado, não sei até que ponto é preciso expor o corpo e a mente humana a este tipo de "massacre". Vale ressaltar: há uma seleção com prova técnica e outra médica. Ao identificar riscos de vida, eles dispensam o participante.
Confira aqui sobre as minhas aulas de planejamento.
Outras leituras de janeiro
O primeiro mês do ano costuma ser o com mais volume de livros lidos por aqui. Provavelmente é a energia do início do ano e mais provável ainda eu devo gastar mais energia do que o necessário, pois o ritmo diminui ao longo dos meses seguintes. Minha ideia é conseguir equilibrar melhor isso e ir com calma para não chegar em dezembro muito exausta (vale não só para leituras).
Primeiro eu tive que morrer, Lorena Portela: estou atrasada neste bonde, muita gente leu na pandemia. A autora é do Ceará, pertinho da minha terra, e o livro se passa em Jericoacoara, lugar que amo; achei isso ótimo porque já está mais do que na hora de valorizar outros cenários no Brasil. O roteiro? Uma mulher em burnout decide passar uma temporada na praia para se reencontrar e daí tem reviravoltas; a leitura é rápida e fluida. Não amei, mas é gostosinho para férias.
Oração para desaparecer, Socorro Acioli: encantador, sublime, bonito demais. Socorro também é cearense, a história se passa parte no Ceará e parte em Portugal, ou seja, cenários bem diversos. A história é sobre “Cida, uma mulher sem identidade nem memória, reconstrói pouco a pouco uma nova vida em um lugar completamente desconhecido. Jorge encontra nessa misteriosa estrangeira uma paixão inesperada, que recria o que não parece provável. Do outro lado do Atlântico, Joana é o fantasma de um amor há muitos anos perdido por Miguel". Não quero falar demais porque é um roteiro sobre mistérios e você se surpreende muito. A autora acertou muito com as lendas brasileiras, a valorização do seu estado, através de um romance de tirar o fôlego. LEIAM!
Vale da estranheza, Anna Wiener: a autora conta sobre sua experiência como funcionária, do gênero feminino, no Vale do Silício. É uma ótima fonte de fofocas, lia antes de dormir. Mas tem gatilhos sobre trabalho e ambientes tóxicos. No mais, soou muito americano para mim; no sentido de ter detalhes que não sei por causa da cultura, do contexto, e ficou ruim de pegar. É longuíssimo e ainda não sei se valeu meu tempo.
Desculpem o “atraso", geralmente envio cedinho, mas estou viajando. Por outro lado, achei bom revisar de manhã. Então, seguimos nas segundas, não necessariamente às 7h.
Uma semana de boas resistências por aí.
Beijo,
Gabi
O Brasil é ótimo no clássico "jogar pra debaixo do tapete". Que bom que falou sobre tudo isso.....
Concordo sobre o da Lorena e tô Doida pra ler o da Socorro! ♡