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Nesta última semana me senti profundamente triste. E também visceralmente com raiva. E confusa. E impotente. E com medo.
As notícias do que está acontecendo no mundo nos desestruturam e apesar de toda compaixão, a sensação quase palpável é de outra coisa, talvez tormento talvez uma dor daquelas que não sabemos dizer de onde vem. Palavras e termos como guerra, armas, ataque, morte, operação policial, terrorismo, medo, invasão se repetem aos montes. O desejo do pacifista - ainda acredito sermos uma boa fatia de humanos - é o oposto de tudo isso. No entanto, o nosso peito anda pesado. Na nossa cabeça ecoa algo longe do que pode ser chamado de paz.
Em meio a inúmeros posts e comentários com posicionamentos levianos e preconceituosos sobre conflitos, me lembrei de um mini livro com uma troca de cartas entre ninguém menos que Albert Einstein, físico e gênio por trás da teoria da relatividade, e Sigmund Freud, psicanalista, às da psique e pai da psicanálise. Por que a guerra? (1932) é uma pergunta de Einstein estimulada pela Sociedade das Nações, uma espécie de pré Organização das Nações Unidas, em um momento de tensão mundial: o entre guerras. A Primeira Guerra (1914-1919) já tinha acontecido e a iminência de uma próxima estava no ar.
O físico entendeu que seu questionamento exigiria um aprofundamento humano que sua ciência não alcançaria; já conhecendo Freud pessoalmente - até trocavam cartas por amizade -, o convida para uma conversa reflexiva. Não tinham como objetivo encontrar respostas práticas para parte alguma, até porque a posição de Einstein era bem clara em relação aos Estados. "Parece que praticamente o domínio da atividade humana mais crucial para o destino das nações está inevitavelmente nas mãos de governantes políticos totalmente irresponsáveis.", escreveu em seu envio.
Na resposta de Freud, temos um encontro com a psicanálise. A teoria defende que temos pulsões irresistíveis de vida e de morte, a primeira nos preserva, nos suscita a busca pelo prazer e pela vitalidade, e a segunda está associada à dissolução, à tendência à agressividade e a destruição da vida. "Os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos pelo uso da violência", explica o psicanalista. Somos meio brutos, em resumo, e gostamos do poder que é uma forma de violência segundo o mesmo.
Enxergo também que o campo da violência tem algo de sedutor exatamente por causa do poder associado. A pessoa agressora se torna o centro da atenção. A razão do “palco” é o medo do outro, ou seja, é frágil, mas isso pouco importa para quem está inebriado pela falsa sensação de controle do seu entorno. A pulsão de morte e vida se misturam no inconsciente do indivíduo em busca da superioridade.

A agressividade é um impulso "fácil" de ser engatado quando estamos no sentimento que descreve o nosso momento atual: a dor. "Recalcar as feridas nos torna agressivos.", revela o filósofo, apresentador e autor do Diálogos possíveis (2022) Francisco Bosco em uma entrevista no podcast "Cartas de um terapeuta", do psicólogo Alexandre Coimbra. Minha mãe já tinha me relatado o mesmo em outras palavras. Professora da rede pública, estudou sobre a psicanálise na educação, o que culminou em um artigo sobre violência nas escolas. O aluno que chega na sala de aula carregando mágoas do seu contexto social e/ou familiar, é mais suscetível tanto à reações brutais quanto à prática do bullying com os colegas.
No nosso contexto moderno, a versão brutal do adulto é rapidamente ativada quando lemos um comentário ou post nas redes sociais ou quando alguém se posiciona diferente de você, no grupo da família, em uma questão política. Buscamos a “solução” com gritos, rompimentos e mágoas. Eu mesmo, quando assisto na televisão mísseis passando para lá e para cá entre territórios, sinto em primeiro plano a raiva do poder que está fomentando aquilo. Reboliça o corpo.
Mas, apesar da raiva ter a função de nos colocar em movimento e de ser uma base para, ora vejam, a esperança, eu não quero senti-la todos os dias. Suponho que você também não. Permanecer no pico da fúria com frequência é como ter estresse crônico. Ou seja, aos poucos, ao invés de nos levantarmos e irmos em busca dos nossos objetivos individuais e coletivos com confiança, ficaremos sentados no sofá esbravejando no Instagram e quando o despertador tocar no dia seguinte, a cama será irresistível. Alguma coincidência? Ter a agressividade como estilo de vida é desgastante e não resolve nada.
Refletir o amor
Com as noites mal dormidas, uma dor perturbadora no pescoço e o cansaço da raiva, recebi uma mensagem de uma amiga perguntando quando poderíamos nos ver. Agendamos. Depois falei com outra sobre fisioterapia, estava precisando de uma recomendação. Ela me passou e como era perto da casa dela, nos encontramos para um suco e um papo delicioso antes da consulta que foi maravilhosa e acolhedora. Uma terceira me respondeu algum post no meu Instagram e marcamos um café online. A quarta se ofereceu, sem eu nem pedir, para me ajudar com informações sobre o universo editorial. No outro fim de semana, saímos para conhecer um lugar novo e quando estávamos voltando, o sol começou a se preparar para partir, paramos na praia e de lá fomos em um bar e passou um grupo tocando samba. Uma criança numa das mesas dançou animada. Eu sorri e também dancei.
Quando me dei conta disso e de muitas outras coisas, entendi que tudo que eu precisava era de amor. Ser inundada por esse sentimento que varre tudo dentro da gente e deixa o corpo com sensação de colo. Meu coração saiu, ao menos por um tempo, do estado de tristeza e de raiva. A escritora italiana, filha de somalianos, Igiaba Scego, escreve no seu livro Minha casa é onde estou (2010), que "o amor é esperança, renascimento, novas portas que se abrem na vida.". Senti isso na pele.
Como a gente sabe tão pouco sobre as experiências que nos provocam o amor? E tanto sobre a raiva, a guerra, o conflito?
Não estou tendendo ao polianismo e não acredito que chegaremos em um nível tão grande de amor neste planeta que não haverá mais guerra. O que refleti foi: olhar mais para este sentimento pode ser uma ferramenta para uma vida menos dolorosa e mais conciliadora. Funciona com os alunos da minha mãe e da minha tia e de outros profissionais da educação. A professora que recebe esse aluno machucado e deságua afeto sobre ele, pode transformar uma vida inteira.
É uma tarefa árdua. Amar não é óbvio, nem no casamento, nem na parentalidade, nem no contexto social. É preciso entender o outro, saber como ele se sente amado, acolher sua fala, construir confiança. "A realidade é que cada um de nós costurou, ao longo da vida, uma colcha de retalhos das experiências que vivemos, do jeito que fomos amados pelos nossos cuidadores, dos amores que assistimos ao nosso redor, da cultura em que estamos inseridos e que nos é ensinada pelos livros, filmes e etc, e criamos a nossa versão esquisita do que é amor.", explica a escritora do recente livro Vamos conversar (2023) e psicanalista Elisama Santos.
“A maioria das coisas que valem a pena ser feitas são difíceis”, no livro Talvez você deva conversar com alguém (2020), da terapeuta e jornalista americana Lori Gottlieb.
Se alguém me perguntasse o que faz o amor crescer em mim, não saberia responder. Falaria algo como estar com os meus afetos, por exemplo. E é tão maior que isso. Você saberia responder? Consegue ir além e dizer o que te faz seguir amando? O que nos faz persistir no amor diante das frustrações e porradas da vida?
Engolir a labuta
O meu livro em andamento é sobre esperança. É um texto cheio de perguntas, confissões, angústias e busca por consolo. Enquanto o destrincho, página a página, me pergunto como Elisama, Francisco Bosco e outros diversos autores seguem na labuta, dando palestras, dialogando, sobre a luz no fim do túnel enquanto a casa cai. Essas pessoas devem se inundar de amor. Não encontro outra explicação plausível.
Na verdade, nem preciso ir longe para entender. Tenho um exemplo desses bem perto de mim. Minha amiga
é uma esperançosa convicta, portanto uma obstinada. Ela enxerga as possibilidades, se abraça com a vontade de fazer os diálogos funcionarem mesmo quando é desrespeitada, estuda sobre a comunicação não violenta e conversa com todo tipo de gente. Entendo que ela ama a vida, não só a dela, e por isso segue. Eu me inspiro muito a cada conversa nossa, me dá fôlego para continuar acreditando no lado bom da força. É a prova de que o amor é grandioso mesmo em quem não faz discursos em praças públicas.Gosto de pensar que amar é o que faz a gente não desistir da gente mesmo, de viver com sentido. A superficialidade é fácil, tão inebriante quanto a agressividade. Dar conta da existência é outra coisa. É pulsão de vida. Não precisa ser romântico nem mesmo ter como objetivo a paz do mundo tal qual uma miss ao longo dos anos, tampouco iludido.
Por que amar?
Ainda não sei todas as coisas que me preenchem de amor. Certamente nunca saberei cada detalhe e serei surpreendida em algumas situações. A minha colcha de retalhos é grande e vou mudar ela de lugar várias vezes ao longo da vida assim como faço com a de dormir. Tampouco sei dizer com todas as letras qual a dor que me leva a agressividade. Ela existe assim como existe para todos nós, alguns mais e outros menos. Espero ser cada vez mais capaz de tocá-la a ponto de inundá-la de amor e ela se tornar menos violenta. Sei pouca coisa, portanto.
Mas uma delas, por hora, consegui descobrir. Por que amar? Porque enquanto houver vida, ainda que sob escombros, não é o ponto final. Seguimos amando porque existir é a nossa pulsão maior; aparentemente quem (ou o que) nos criou não nos quer jogando a toalha. Então, haja amor!
Notas
O vídeo da criança tocando tem qualidade baixa, mas sempre que preciso sorrir, o procuro. Renanzinho tem uma energia linda demais.
Focar no amor e no que nos faz amar não é evitar conflitos, não dialogar, não buscar resolução ou mergulhar na ilusão. Reconhecer a guerra, o que nos leva a ela e como resolver é tão importante quanto procurar o que nos mantém vivos com o mínimo possível de saúde mental e física. :)
Quero deixar aqui todo meu amor para as pessoas que estão perdendo os seus e com medo de serem os próximos na Faixa de Gaza, encurraladas por tantos poderes, aos judeus que reencontram o medo e a perda de forma palpável em meio a ataques e aos brasileiros moradores de comunidades, como o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, também encurralados por muitos poderes. E a todos os povos que convivem com guerras civis, crises humanitárias e a sensação do desespero da invisibilidade. Que cada corpo tenha a chance de sentir uma inundação de afeto e que a gente saiba acolher uns aos outros.
Uma semana amorosa para nós.
Até,
Gabi
Por que amar?
Muitas coisas para comentar. Que belo texto. Quero reler e voltar pra conversar melhor. Aqui estou esgotada, temporariamente ausente das redes sociais (por ora, só aqui) e também buscando amor. Muito amor e abraços pra você. Obrigada por essa reflexão. ❤️
Preciso reler pra poder comentar com calma... Mas fiquei feliz de ver brechas generosas sobre o diálogo e o amor. Vc ter começado com essas cartas do Freud e Einstein me ganhou demais, é um dos meus textos preferidos da vida. Beijo.