Se esta conversa fosse uma sessão de psicanálise, especialmente a primeira, poderia dizer que a culpa da minha obsessão por organização e planejamento foi a separação dos meus pais. Não que isso não tenha exacerbado a característica. Tampouco foi uma escolha deles ou algo calculado. Como não estou em análise aqui, confesso que tudo nasceu bem antes do clichê de filha. Talvez possa jogar na biologia e aos meus genitores sobra ter contribuído com esse traço no meu DNA. Vai saber.
Cresci em uma família cujo atraso era padrão. Eu, ainda criança, implorava a minha mãe para chegar no horário nos meus poucos compromissos. Agora a gente ri disso e de outras coisas semelhantes quando se reúne em almoços. Na época era um estresse. Também não vim de um lugar cuja organização fosse um ponto forte e isso me deixava com os nervos agitados. Toda viagem alguém esquecia alguma coisa. Descobrimos, em algum momento, que isso se chama TDAH (déficit de atenção). Tenho alguns dos sintomas, mas certamente minha mania de controle me levou a achar ferramentas que mantivessem a ordem, fui, então, como o patinho feio no bando.
Eis que aos 15 anos, utilizando um dos recursos, pedi uma agenda da Capricho (sim, a revista teen de outrora) e ganhei com muito custo. Não a quis apenas por ser fã da publicação, mas porque queria organizar minha vida de verdade. E o fiz. Ela está no meu antigo armário na casa da minha mãe e se você abrir o mês de dezembro de 2003 vai encontrar uma lista de amigos para os quais entreguei cartões de Natal. Também estão lá as datas das provas e seus assuntos e outras tarefas. Essa habilidade foi e é muito útil na vida acadêmica e profissional, nunca perdi um prazo.
O cardápio
Uma década após começar a usar a agenda Capricho, fui diagnosticada com intolerância à lactose (na época, severa) e sensibilidade não celíaca ao glúten (na época, de forma inconclusiva). Mais uma vez, ser planejadora me salvou. Naquele ano (2013), ainda não tínhamos muitos produtos para restritivos no mercado, então se eu saía de casa para qualquer coisa levava comigo um lanche. Viajar era sinônimo de cozinhar antes e carregar uma bolsa extra só de comida.
Foi tão intenso que "larguei" o jornalismo em 2014 - entre aspas porque acho que ele nunca saiu de mim - e fui empreender no setor alimentício focado em produtos especiais. Vendi brownies, cookies, bolos e pães para inúmeras pessoas. Cansei e me diverti na mesma proporção, mas este assunto não vem ao caso hoje.
Precisando ser vigilante com cardápios em restaurantes e afins, intensifiquei ainda mais a característica do controle e ativei o modo medo a toda potência. Enquanto isso acontecia, por dentro era como se eu tivesse tentando segurar uma tsunami com barricadas de barro. A onda vinha e me devastava emocionalmente; por tabela eu piorava de todas as questões intestinais (leva de um a três anos para reconstituir a saúde intestinal depois de uma devassa como a que tive). Esse ciclo me desestruturou de muitas maneiras; comecei a fazer terapia pela primeira vez nesse período.
Continuo prestando atenção nos meus pratos porque preciso. Às vezes solto as amarras de vez, busco ter mais liberdade inconscientemente, e pode acontecer de dar muito errado como deu na minha primeira noite na nova casa. Provavelmente comi algo contaminado por glúten, iniciei o dia seguinte tomando soro. Já estou bem. Sigamos.
A derrocada
Ser intensa me coloca em êxtases excelentes e talvez por isso nunca tenha consumido nada de de drogas - lícitas ou não - e excessos. Sei que se eu tomar um treco desses, sou capaz de furar o teto. Sem qualquer esforço, basta gostar mais de um tema, eu já piso no acelerador. Deixo claro aqui que até a pandemia, achava não só meu controle/planejamento como minha intensidade/obsessão como itens meus exclusivamente positivos. Não são e isso não é um jogo de baixa autoestima nem nada. É a realidade.
Então, em 2020, no caos pandêmico, eu achava tudo aquilo louco e tals, mas estava em êxtase por viver a história e tendo 50 mil ideias por dia para transformar em trabalho ou para divulgá-lo. Fiz lives, exercício físico na sala de um apartamento de 55m2, cozinhei, meditei, maratonei séries, fui presente a distância para amigos e familiares, dancei, li muito, quando foi possível fui ao parque a poucos metros de casa e andei e andei. Gravei um workshop inteiro, coloquei no hotmart e vendi (pas mal) sozinha. Tinha convicção que em 2021 tudo seria normal de novo. Mas, não foi.
Só aí eu pifei. Na verdade, só aí me dei conta que estava em curto circuito e que meu controle e intensidade estavam gastando toda minha fiação. Também assunto para depois; se bem que falei um pouco dele nesta publicação aqui.
Em meio a pane no sistema, mas já consciente e em pausa do trabalho, nos mudamos para São Paulo (sou de Recife). Chegamos na terra da garoa nos finais de 2021 junto com uma frente fria fora de hora. Com a nova vida fui obrigada a ter contato com o desconforto de ser novata (também já escrevi sobre isso aqui), a construir uma rotina do zero em um novo clima, a criar novos laços e uma nova eu. Só que para ser sincera eu não estava entendo bem nem quem era a antiga eu, então foi bem difícil essa fase. São Paulo foi mais castigada do que merecia por mim devido ao meu humor.
Tentando respirar
Como disse, ser planejadora e obsessiva não é só coisa boa, mas também é. Essas características me jogaram no poço e me tiraram de lá.
"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o que sustenta nosso edifício inteiro.", Clarice Lispector tinha razão, por óbvio.
Depois de pausar e de entender que não estava exatamente bem, além de manter a terapia, busquei o que sempre me salva: a arte. Entrei em clubes de livros, li muito, vi muitos filmes e fiz cursos por puro deleite. Um deles aconteceu em janeiro de 2022 e foi promovido por Paula, do Chicas. Uma turma de escrita guiada pela mestra escritora Aline Bei cujas aulas são disputadíssimas.
Nas aulas, Aline nos levou para o universo da literatura enquanto nos propunha exercícios de escrita de ficção inusitados para mim que nunca tinha pensado em escrever o gênero. Na última aula, li para ela e a turma sobre a vida de Catarina, minha personagem. Para minha surpresa, todas amaram, incluindo a professora que me estimulou a continuar.
Difícil foi explicar como aconteceu esse texto quando Aline me perguntou sobre o processo para escrevê-lo. Ela segue sendo minha mestra, leu outras produções e me repetiu a pergunta todas as vezes. Passei esses últimos meses, quase um ano, confusa sobre a resposta. Me incomodava não responder de forma estruturada porque isso me põe num lugar totalmente incomum.
Escrever, independente do texto, me devolveu o fôlego quando estava nadando em águas intensas como as da tsunami que tentei segurar tantas vezes. Mas, isso não diz nada sobre o processo em si. Como chego às ideias? Como concateno tudo? Como encontro as personagens quando escrevo ficção?
A bagunça
Não sei se foi a maturidade - fiz 35 anos na sexta e tem sido uma idade bem forte para mim - ou se foi a experiência da escrita nesse lugar de encontro com outras escritoras e mestras, mas recentemente encontrei uma boa resposta. O processo da escrita me desorganiza e, por isso, é também meu centro. Parece maluco, eu sei. A gente procura coerência nas nossas mil versões, habilidades, formas de viver e se frustra todo dia porque não encontra. Buscamos ter um corpo são e uma alma pensante e estável. O desejo é estar todos os eus reunidos de forma organizada.
Foi por causa desse desejo - talvez imaturo talvez iludido - que não deixei a escrita me ocupar como ela poderia. Eu, uma pessoa que deu bastante espaço para agendas e planejamentos, não conseguia lidar com essa coisa que chega até mim da forma mais desordenada possível. Enquanto escrevo esse processo, agora com um circuito explicável a seus moldes, me emociono.
Escrever me coloca no meu centro porque eu deixo a tsunami vir derrubar tudo dentro de mim sem tentar colocar bloqueios. Acesso mil camadas que estavam encobertas por construções antigas. Ergo tudo de novo, reconstruo a cidade, a praia, as livrarias, os cafés, os points. Coloco novos sonhos, ajusto medos e, por que não, recomeço planos.
Parece um processo sem qualquer inteligência. Como se fosse uma receita de bolo solado. Esse sempre foi meu medo com a desordem, inclusive. Pânico de pensar em soltar tudo e o resultado ser medíocre e sem graça. Nesse encontro com a escrita, aprendi que o caos quando feito de boas referências, estudos, sentimentos e intenções provoca bons pratos e textos. Talvez na primeira tentativa saia meio torto. A lição de que tudo bem errar e editar e às vezes jogar no lixo para recomeçar ainda estou em aprendizado. Essa está osso.
No fim das contas, nesse emotivo aniversário (postei sobre ele aqui), comemoro a idade com um prazer nunca sentido antes e esse não quero chamar de aprendizado não. É um desaprendizado da organização. Deixo a palavra me bagunçar. Que delícia!
Um semana de bagunça boa por aí.
Um beijo,
Gabi.
Também ia perguntar da receita do bolo 🌻
A ilusão de controle por algum tempo me angustiou, pois comecei na época a achar que precisava decidir tudo na vida. E tem coisas que simplesmente surgem e acontecem, independente da nossa intenção de controlar tudo. Quando comecei a abraçar mais os acasos, sinto que fiquei mais leve e tranquila, em vez de me concentrar só na preocupação com imprevistos. Claro, nem tudo sempre precisa sair como a gente quer - até porque nem sempre enxergamos todos os caminhos pra escolher e controlar o que vem pela frente. Amei essa edição!
Amei essa news : )