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O planejamento do caos

gabialbuquerque.substack.com

O planejamento do caos

As gostosas surpresas da vida não estão nas listas do planner, mas aquele diploma sonhado também não chega devido ao acaso, então… Planejar ou não? Eis a questão

Gabi Albuquerque
Jan 23
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O planejamento do caos

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Você conhece a história por trás da torta francesa Tarte Tatin? 

A torta Tatin surgiu de um incidente culinário por volta de 1880. Duas irmãs, Stéphanie e Caroline Tatin, eram donas de um hotel com o nome de sua família, a 160km de Paris. Ambas eram empreendedoras que faziam muitas tarefas no estabelecimento, como acontece ainda hoje com tantos, e uma delas era cozinhar. Um belo dia, as maçãs da torta tradicional foram esquecidas no fogo e caramelizaram demais. Stéphanie então decidiu dar um jeito para conseguir servir no jantar; forrou a fruta com uma massa tipo "empadão" e pôs no forno. Trouxe a mesa no prato com as maçãs viradas para cima e foi um sucesso.

Foto: New York Times Cooking

Mais de cem anos depois, ainda está nos cardápios do mundo inteiro, às vezes servida com massa folhada (eu, particularmente, desaprovo essa ideia. risos). Dizem que o brownie também nasceu de uma trapalhada, no caso foi a falta do fermento. Descobrimos queijos maturados pelo tempo que permaneceram esquecidos e guardados. 

Adoro uma boa história gastronômica para ajudar a contextualizar uma pauta. Mas, não se preocupem que este texto não é uma lição piegas sobre o erro. É sobre nossa tentativa de dominar o tempo, as metas e o futuro. Pode ser que você ache piegas de qualquer modo, espero ao menos ter uma chance porque temos como fonte não só a culinária como um Nobel de Química. Não que cozinhar seja menos importante, acredito que não há uma hierarquia de ciências e que receitas são científicas a seu modo. 

A receita do bolo

Se você não frequenta a cozinha, saiba que para uma comida sair, precisamos organizar e planejar o processo. Para um bolo, pegamos os ingredientes, seguimos uma ordem de adição, se não desanda, colocamos no forno um tempo determinado, esperamos esfriar para tirar da forma e pronto. Já é um protocolo preciso, por isso quando alguém busca uma fórmula pronta para algo da vida, falamos que ela quer "uma receita de bolo". 

Meu bolo de cenoura. Foto: Natuza Tuz.

Mas, em outras situações culinárias, não temos tantas certezas, às vezes queremos apenas aproveitar as sobras da geladeira. Ainda assim, nessa aleatoriedade há um objetivo final, nem que seja um macarrão com tudo dentro para jantar. Foi numa dessas que surgiu o arroz de forno e muitos outros pratos. Quando a bagunça não dá certo, esquecemos, e quando dá se torna uma receita registrada com aprovação pública. Só não é tão protocolar como a do bolo, é cria do caos.  

A desordem, como essa das receitas acidentais, tem vindo até minha mente enquanto penso no planejamento do ano e observo as pessoas falando sobre isso. Há quem defenda a política do zero planos, há quem cronometre todos os passos. Conteúdos de mídias sociais e revistas tentam, todo mês de janeiro, te dizer o que fazer tentando entregar a tal "receita de bolo" quando na verdade a vida está mais para o arroz de forno. Atente para o fato de que ainda há um modo de fazer, afinal o arroz não se cozinha sozinho.

Arroz de forno com legumes. Foto: Panelinha

Fazendo as perguntas certas 

Planejar é uma habilidade humana que foi essencial para o nosso desenvolvimento. Foi por causa dela - e de algumas emoções - que percebemos a passagem do tempo, começamos a agricultura, construímos comunidades, nos salvamos de ataques de animais e, se pensarmos mais recentemente, criamos métodos contraceptivos e cozinhamos pratos deliciosos. Então, é natural que passado o brinde  do Revéillon,  as pessoas criem metas para o ano que se estende a frente.

O desafio está no que está sendo escrito no caderno e no bloco de notas e o que faremos com isso ao longo dos meses seguintes. Eu, inclusive, já dei aula de planejamento, portanto sou uma entusiasta da ideia, e a maior queixa entre alunos - majoritariamente mulheres - era o processo para alcançar as metas. 

Não é só pegar o caderno, a vida tem das suas. Foto: Dedeu Rangel

São tantas possibilidades para não realizar um plano. A meta pode ser incompatível com a sua vida real ou não é de fato sua escolha do momento ou sua autoestima está precisando de um reforço. Quase sempre, ajudava quem atendia com estrutura, organização de tempo, escolhas mais compassivas e no fim recomendava seguirem para terapia. Nenhum sonho é possível com tanta culpa e autocobrança em volta. 

Por isso, nos últimos anos tenho feito o papel de advogada do diabo do planejamento e muitos questionamentos. O que faz de fato um sonho se realizar? E o caos que resulta numa tarte tatin não conta? Questiono desde o ponto zero o desvio de rota que a ferramenta do planejar - não a habilidade - sofreu depois da nossa geração aderir a cultura do sucesso pleno e do controle (falso controle, na realidade). Será mesmo que as pessoas não estão conseguindo cumprir seus planos ou são os planos que estão indo longe demais?

Mundo vasto mundo

Outro dia uma amiga desabafava sobre os desafios da vida adulta atual e me disse: às vezes acho que estamos querendo demais, sabe? Nossos pais tinham tão menos que isso, chegamos tão longe e ainda estamos mais e mais insatisfeitos. Ela me parece certíssima e não tenho dúvidas de que estamos criando metas inalcançáveis. Aliás, as pesquisas mais recentes sobre nossa geração, dão esse tom. Viemos com muita sede ao pote por inúmeras razões e isso deu muito errado.

Nada mais millenial, né? Foto: Yoav Aziz

Quando traçamos planos, estamos na verdade tentando realizar um sonho ou objetivo. No entanto, além da obsessão por ser sempre melhor, o mundo moderno tem tantas opções de escolhas que a gente não para de criar novas metas e novos patamares. Isso poderia ser bom, mas não é. O psicólogo e economista Barry Schwartz, autor do livro O paradoxo da escolha (2004), explica que as incontáveis possibilidades acabam trazendo mais frustração e ansiedade para as decisões e vivemos às voltas pensando "será que a outra opção era melhor?". Queremos não só escolher, mas ter plena convicção da escolha ter sido a correta. 

Sempre com razão 

O estudo científico num dado momento, mais precisamente meados do século XIX, se banhou do que podemos chamar de autoestima exacerbada. Havia um desejo de delinear um mundo regido por leis naturais que funcionavam em cenários de estabilidade e permanência (Egon Bockmann Moreira, na Gazeta do Povo). Foi assim que passamos a classificar algumas ciências como exatas, devido ao seu grau elevado de precisão. O Iluminismo que veio antes deixou esse legado para nós: o valor da razão. Embarcamos na ideia até os dias de hoje, não só para a ciência como para os seres humanos.

Foto: Dan Cristian Pădureț

Eis que, muitos anos depois, o escritor e químico Ilya Prigogine, Nobel de Química de 1977, causa furor nos colegas ao declamar em seus estudos o fim das certezas. "Assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real, uma ciência que permite que se viva a criatividade humana como a expressão singular de um traço fundamental comum a todos os níveis da natureza.”. Prigogine defende que quando se protocolou as descobertas científicas nos últimos séculos, o fizemos baseados no que nosso cérebro permitia enxergar e prevemos tudo funcionando organizadamente, desconsiderando os humanos, seus pensamentos e ações. 

Um exemplo prático disso brotou na minha tela de e-mail por esses dias. Era uma propaganda de um curso sobre planejamento - dos mais aceitáveis até -  cujo tema era quebrar o tabu em relação a diálogos sobre a morte. A abordagem da professora neste dia era "por que as pessoas têm tanto medo de pensar sobre morte?". Vejam, eu concordo que devemos melhorar nesse assunto, mas somos humanos, oras. Temos uma parte mental até hoje inexplicada chamada inconsciente. Seremos incoerentes de vez em quando. Queremos tanto controlar tudo através da razoabilidade que chega a ser desconcertante. 

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Vasto é meu coração 

Como já apontei, planejar é uma habilidade essencial. Para seu negócio ou sua viagem ou sua carreira sonhada ou seu mestrado sair do papel, um plano é boa pedida. Porque o tempo escorre e há um risco factível de você estar novamente em um réveillon com olhos marejados pensando no que não fez. Precisamos encontrar nossos sonhos na sua forma mais verdadeira - para isso tenha um momento seu, silencioso e honesto -, nos apoderar deles e os dar vida.

Foto: Thought Catalog

Essa busca não é apenas para este ano ou o próximo. É para a sua vida. O decorrer dos meses é para você praticar os passos para realizar os sonhos. Então, respira. Essa receita de bolo é só sua e é mais sobre seu tempo e rotina do que uma lista de metas de janeiro. Se precisar, compre mesmo os cursos, busque organizar a agenda, priorize você. Mas, faça com a mente serena e lembrando que a maior vastidão de escolhas está no seu coração e não fora. A ideia é se sentir vivendo com mais satisfação e menos comparação com trajetos alheios. 

O destino tem das suas

Ter contato com sonhos, metas, tarefas pode ser desafiador para algumas pessoas - como já sugeri, terapia - mas, a maior dificuldade mesmo está na receita do arroz de forno. Porque ela nasce do caos, não tem precisão, e como já vimos, amamos uma certeza. Ilya Prigogine, o químico, alega, no seu livro As leis do caos (2002), que os fenômenos irreversíveis não se reduzem a um aumento de "desordem" e os reconhece com um papel construtivo. Observo o mesmo na vida. 

Não fosse o acaso, não haveria tarte tatin e nem nos apaixonaríamos por ninguém; isso seria demasiado sem graça."Para que a magia suceda, é preciso deixar que a casualidade faça das suas", disse a poeta portuguesa Matilde Campilho. Então, sonhe, faça acontecer o que é intrínseco, preencha seu planner se desejar, mas deixe algumas páginas em branco. É preciso deixar espaço na caixa torácica para o imprevisível. Para amar mais.

Notas

1: Todos os meus clientes foram atendidos plenamente no quesito planejamento, boa parte inclusive me lê aqui - oi, pessoal! -, mas tem etapas exclusivas de profissionais da psicologia. É dever de quem vende esse tipo de produto, encaminhar as pessoas para análises profundas. A vida não se resolve com caixinha de perguntas do Instagram.

2: Haverá frustração com metas pequenas ou grandes. Não existe vida sem isso, aliás. Realidades.


Sobre o assunto, recomendo:

  • Essa grandiosidade sobre o que realmente importa: sobre metas improdutivas e viagens com os amigos

    Queria ser grande, mas desisti

  • Para pensar sobre essa demanda que tem nos causado certo estresse: Ano de pensar menos em propósito

    Ale Garattoni

  • O inspirador Você está sonhando muito grande? (em inglês, facilmente traduzido pelo Google Tradutor) (The Atlantic)

  • Esta coluna fresquinha da Martha Medeiros é tudo que sugeri aqui: mandar o sorvete às favas

    realmarthamedeiros
    A post shared by Martha Medeiros (@realmarthamedeiros)

O Para se informar agora é assim: um tema destrinchado, links internos e alguns poucos em lista.

Decidi focar na informação de um assunto por vez para causar menos sensação de “perdendo algo” quando não há tempo para ler tudo de uma lista de links. :)

Um beijo, desculpe se causei fome com as fotos de hoje risos.

Boa semana,

Gabi


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6 Comments
Lalai Persson
Writes Espiral
Jan 23Liked by Gabi Albuquerque

Nossa, concordo com tudo! Inclusive, eu me dei conta de que sou uma péssima planejadora. Sempre faço minha lista de metas para o ano e guardo num lugar especial. O problema é que eu sempre voltei à lista já no fim do ano para checar o que eu tinha conseguido conquistar. A surpresa era grande, pois eu via que tinha colocado metas que eu sequer lembrava. Foi só neste ano que eu lembrei de que a lista precisa ficar à vista, ser olhada regularmente para poder ir acertando rota, revendo metas e, inclusive avaliando se realmente fui otimista (ou exigente) demais com os meus planos. Adorei as metáforas com comida...

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Paula Maria
Writes te escrevo cartas
Jan 24Liked by Gabi Albuquerque

Arroz de forno era minha comida preferida de Natal quando minha vó paterna ainda era viva. Em geral gosto muito de pratos estilo junta tudo, os sabores são tão interessantes... Além disso, essa falta de receita pronta ajuda a gente a enxergar os restos como pedaços que compõem entre si. Sobre bolos e receitas, como ex confeiteira convido a todea terem a sua receita pessoal de bolo, que só é possível fazendo sempre, errando e acertando, até fazer sem olhar medida. Bolinho é amor. 💞

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