Meu corpo tem sido minha máquina do tempo. Tem dias que ele me leva para o passado, cheio de energia e vitalidade. Me sinto jovem e segura com a certeza que ainda tenho muito a fazer. Fui uma menina sem grandes problemas de autoestima, então este lugar, que não existe mais, é confortável e pleno. Geralmente, essa estadia dura pouco. Não sou eu quem comanda o ir e vir da geringonça.
Noutros dias, ele me lembra que no agora estou carregando as histórias de um tempo maior do que consigo perceber que vivi. Então, a dúvida do que está por vir toma todos os meus espaços. A ansiedade às vezes o faz tremer, às vezes perder a fome, às vezes dá dor de cabeça. Este corpo e eu, ou nós, somos muito entrelaçados. Na camada das ideias e pensamentos até consigo fingir que estou a todo vapor, já na pele, nos órgãos e nos ossos, não tenho escapatória.
Ainda tem alguns dias em que sou levada para o futuro. Lá sou uma senhora animada, cabelos coloridos, numa casa perto do mar e com pé de manga. Nessa temporada parece que finalmente aceito o formato do tal corpo como ele é. Não fico apenas tentando me fazer acreditar naquele negócio de se amar como somos, eu realmente consigo isso na terceira idade. Pelo menos é o que tenho visto na viagem do tempo. Pode ser devaneio.
Me olho no espelho e já não encontro aquela menina do passado. Eu gostava dela mesmo quando estávamos, meu corpo e eu, doente. As palavras dos outros eram de elogios e isso que importava. "pelo menos está magra", diziam. Era um tempo em que as opiniões tinham mais valor do que mereciam. Agradar, o verbo mais presente no inconsciente feminino. Nunca verbalizamos, sempre praticamos. Estranho sentir conforto nesse lugar, mas sinto; fazer o quê?
Outro dia uma amiga me fez um elogio e disse que queria ter minha elegância. Respondi que queria o abdômen dela. Rimos. As duas querendo algo do outra para talvez quem sabe sair melhor na fita. A quem quero enganar, no presente as opiniões alheias ainda são recebidas. Com menos peso, menos atenção, mas cutucando nem que seja um pouco.
Estes dias emagreci porque passei uma madrugada passando mal e mais uns dias sem conseguir comer direito. "pelo menos está magra", pensei e em seguida fui tomada pelo susto. Minha mente consolou meu corpo com um absurdo.
Aquele hábito feminino, estimulado por uma cultura cruel, de comer pouco quando sai para um restaurante ou de "pedir só uma saladinha" por causa da dieta sempre me deu calafrios. Eu, taurina com prazer alimentar, rejeitava isso com todas as minhas curvas cuja genética sempre beneficiou. "amiga, você não precisa disso", dizia para anos depois me consolar com magreza quando adoeço porque parece que os genes têm limites de benesses depois dos 30.
Na minha máquina do tempo não consigo fazer nada típico dos filmes que usam esse artifício. Sequer posso mexer em algum desenrolar de uma história para eliminar um "se eu tivesse…". Só revejo o passado, estresso o presente e sou otimista com o futuro porque é a única saída possível. Não espero mais tanto amor por mim mesma. Me curto, mas sou humana e carrego tantos problemas e traumas quanto os outros. Não faz sentido um pedestal, acho que só me coloca no comportamento egóico.
O que quero saber mesmo é com quantos anos vou parar de sentir conforto onde não estou. Quando serei levada para este lugar? Será que lá vou conseguir usar o tempo verbal no presente?
Ouço essa música quase todos os dias como mantra. Ela fala que temos uma alma bonita e para deixar sua energia vibrar. Nesse caso, para mim faz sentido sentir. Aliás, esse grupo tem ótimas músicas para ouvir de manhã, meditar e respirar.
Eu vejo o futuro repetir o passado
Escolhi o tema para o clube de junho antes mesmo de escrever este texto do corpo que viaja no tempo. Tudo se entrelaça na minha cabeça e sai em forma de palavras pelo visto. Este mês vamos falar sobre "o ontem que nos trouxe o hoje". Curioso, não?
Ao mudar de cidade, observo prédios, ruas, pessoas, hábitos, as regras próprias do lugar e vou buscando as razões da vida naquele momento ser como é. Uso o Google, converso com quem já vive ali há um tempo ou até nasceu, leio fatos da história do Brasil e aprendo muito sobre culturas. Faço o mesmo quando viajo por aí.
Quando estava procurando apartamento no Rio - uma saga pra lá de cansativa -, o livro que me acompanhou foi o Humanos Exemplares (2022), da Juliana Leite - foi o do clube de abril -, que se passa na cidade e tem ótimas cenas de um passado não muito distante. Fiquei curiosa e fui catar a história local, como se formou os bairros, quem viveu aqui. Foi nessas pesquisas que redescobri o livro O cortiço (1890), do maranhense Aluísio de Azevedo.
O escritor veio morar em terras cariocas com mais ou menos 20 anos e nada melhor do que ser estrangeiro dentro do Brasil para observar a cultura de um lugar e como ele está se transformando. Tenho repetido que o nosso país fala a mesma língua, mas tem diversas linguagens. Então, será a obra que iremos ler para refletir o presente olhando o passado distante. Li a primeira vez quando era adolescente, então será ótimo rever essa história com mais maturidade. Para vocês também!
Mas, não é só indo longe que a gente consegue pensar na nossa linha do tempo. Para aumentar o repertório e nos aproximar de uma temporada que nós também vivemos, escolhi o documentário Racionais: das ruas de São Paulo para o mundo (2022) para a obra de audiovisual. Na tela vamos acompanhar a história do grupo Racionais MC's que transformou o movimento do hip hop no Brasil através da poesia e dando voz ao que viviam as pessoas periféricas nas grandes cidades. A produção é do Preta Portê Filmes e promete muitas emoções.
Nosso encontro será dia 25/06, às 16h. Lembrando que tem apresentação do tema, das obras e roda de conversa. Nosso grupo é daqueles que alegram o dia. Para participar, faça um upgrade da sua assinatura. Por sinal, semana que vem tem as novidades da versão premium e do primeiro ano da Tempo para você. :)
Uma semana de presença e afeto para nós.
Beijo,
Gabi
adorei a reflexão!!
lindo <3