Ser ou não ser? Na dúvida, os dois.
Nossos sentimentos são emaranhados que nos tiram o tédio e nos entregam incoerências que só vivendo para ver
Outro dia conversava com amigos sobre mudanças. Eles estão indo para outro país e relataram as saudades que iriam sentir da terra em que vivem. Se perguntam com certa frequência: como vou deixar esse lugar? Acreditavam que sentiam isso por serem de uma cidade que, todos concordam, é muito bonita. Disse a eles que eu senti o mesmo quando sai de Recife. Belíssima sim. Sei, no entanto, que a beleza dela, para mim, não é só os rios entrecortando as ruas, o mar, o sol, as folhinhas cor de rosa caídas nas calçadas no outono.
Recife é minha raiz. É o lugar conhecido. Parte do meu encanto está nas pessoas, na linguagem, nas lembranças, no paladar. Na minha última semana como moradora sentia um nó no peito que de tempos em tempos volta a dar as caras. Desejo profundamente um caldinho na areia quente da praia. E quando espalho essas saudades em palavras, quem ouve ou lê acredita que estou desgostando de São Paulo ou até mesmo infeliz. Como se precisássemos escolher um ou outro sentimento, como se não nos coubesse o tudo.
Os meus amigos, além da saudade prévia, talvez tenham caído na falácia de que ir para outro lugar - e ainda gostar! - é trair sua origem. A vida, felizmente, não carece de dicotomias extras. Já basta a que ela mesma nos dá sem escolha. Em uma outra conversa, essa sobre outro assunto e com outras amigas, ouvi a
falar o que ouviu de uma terapeuta: duas ou mais verdades podem coexistir num mesmo espaço. {Esta frase ficou comigo ecoando, Babi. Obrigada!}Essa “confusão” de afetos é apenas nosso jeito humano de ser e por isso penso que traição mesmo é ficar. Na mesmice. No medo de experimentar. No trabalho que já não faz sentido. Numa rotina que até a irritação já não te causa fervura. No casamento que é uma repetição de bom dia e boa noite. No livro chato que todo mundo está lendo. É querer dar um só nome ao que se vivencia, quando na prática a gente sente tudo misturado.
Sinto a empolgação de uma nova aventura e na mesma medida um frio na barriga que me revira o estômago. Quando meu marido viaja a trabalho, em um mesmo minuto fico animada com a solitude que me aguarda e entristecida com a solidão e a carência que só uma casa vazia pode gerar. Escrever também me mete numa confusão dessas. Me pergunto quem penso que sou e na hora seguinte decido honrar minhas ancestrais que abriram a floresta para hoje eu poder sentar numa cadeira e digitar estas palavras.
Quando essas pequenas incoerências cessam é porque a gente morreu e se a gente inventa de podá-las, morremos também; nesse caso de tédio.
Mundo, mundo, vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo, mundo, vasto mundo
Mais vasto é meu coração -
Poema de sete faces, Carlos Drummond de Andrade
Ao invés de música, este mês vai um trechinho deste poema que me veio à cabeça enquanto escrevia.
Sustentar ausências (Clube Tempo para você)
Li esta semana, numa página do livro A cidade e a casa (2022), da escritora italiana Natalia Ginzburg, uma personagem falando que a solidão em Roma era bonita, exceto nos domingos. Na percepção dela, neste dia se espera o telefone tocar e quando há silêncio, há feiura. Achei esse trecho, assim como muitos outros, tão humano. Nunca está tudo pleno. Sempre há uma ausência.
Nós somos os únicos mamíferos com extrema dependência para sobreviver. Mesmo assim, ainda bebezinhos, cercados de cuidados e leite, somos apresentados à solidão. Num dia você está dentro da barriga da sua mãe conectado por um cordão e no outro é colocado em um berço de um quarto cheio de luz.
Aos poucos vamos adentrando mais nessa história de ser social e sozinho ao mesmo tempo. Tem o primeiro dia na escola, a primeira festinha de amigo só com crianças, o primeiro livro lido. Nessa fase, achamos o máximo a liberdade se expandindo.
Mas aí, num piscar de olhos, você vira adulto e estar só ganha novas configurações. Você descobre, por exemplo, que ausência também é não conseguir o que idealizamos; o que acontece com certa frequência. É uma frustração misturada com um buraco no peito. Ana Suy, escritora e psicanalista brasileira, publicou uma frase há uns meses que me pegou em cheio: "Viver bem é sustentar cada vez mais faltas".
Essa história de suportar que não vamos ter tudo na vida e conseguir se alegrar com o que tem ficou se repetindo em mim por dias. Chegou até na terapia e foi numa sessão que elaborei o que disse na crônica aí de cima. Nem assim, estas perguntas me largaram. Será que a solidão - ou a ausência - pode ser como a personagem de Natalia que está em Roma? Tem dias bonitos? Tem como evitar os dias feios? O que ajuda a sustentar o vazio?
Para pensarmos sobre tudo isso juntos, nossa conversa do clube Tempo para você deste mês será sobre ausências. Vamos debater o tema através do livro Humanos exemplares (2022), da autora brasileira e contemporânea Juliana Leite, e do documentário Pamela Anderson - uma história de amor (2023), no Netflix, dirigido por Ryan White. Se torceu o nariz para a história de Anderson, pode soltar a face; a ideia do filme é justamente mostrar os machismos e massacres que a celebridade sofreu nos anos 1990/2000 ao ser rotulada como sex symbol.
Nosso encontro será dia 07/05 (excepcionalmente um domingo após o padrão devido ao feriado do Dia do Trabalho), às 16h. Para participar basta tornar sua assinatura premium aqui.
Teremos novidades nas vantagens desta assinatura em breve!
Agenda
Perguntei no Instagram se o envio da newsletter com dicas do mês no mesmo dia do podcast estava sendo ruim, a maioria votou que sim. Mas, quero ouvir vocês, meus leitores fiéis! O que preferem?
Depois da votação e de algumas decisões editoriais, aviso a vocês como será a nova agenda. :)
Uma semana de vasto coração para nós.
Beijos,
Gabi
Que texto mais lindo Gabi, amei as reflexões!
Amei essa News, Gabi! Já anotei essa frase "Viver bem é sustentar cada vez mais faltas"que ficou ecoando por aqui! Obrigada! ❤️