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Revéillon usando preto e os rituais de dezembro
Já parou para pensar porque todo ano a gente se reúne em volta de uma mesa para conversar, comer e celebrar?
Quando tinha 13 anos, cismei que iria passar o Réveillon de preto, apenas para ser anti convenções como uma boa adolescente, mas a roupa precisava ser nova porque algo de supersticioso era necessário para mim. Foi uma grande saga encontrar algo nessa cor em pleno dezembro, principalmente morando em Recife. Meus pais, coitados, se engajaram na causa e assim encontramos um vestido de alças finas com aquele tecido amassadinho, uma tendência da época, e renda na barra. Infelizmente, não encontrei imagens.
Eis que chega o grande dia e a família se reúne na sala da casa da minha avó Maria, hoje falecida, enquanto se prepara para a contagem. Eu olho ao redor e começo a chorar porque sou a única usando preto e vou ter azar no novo ano, meus pais reviram os olhos com razão. Minha tia se compadece e me empresta alguma coisa bege para por em cima. Não lembro como foi meu 2002, mas deve ter sido com prova final de matemática o que era uma tragédia para mim naqueles tempos.
Depois disso passei todos os Réveillon com look colorido - sim, até hoje - e no meu ensino médio e faculdade não tive pendências em provas. Já em outras coisas… Até o vestido pagou o preço da confusão não auspiciosa. Usei uma vez mais e enviamos a lavanderia não lembro porque, não era uma prática com minhas peças, e lá não só lavaram como passaram haha. Voltou sem os amassadinhos e sem graça alguma.

Toda essa história de uma menina cheia de ideias curiosas é para mostrar como os rituais e os seus códigos impactam não só nosso pertencimento, como também nossas memórias e vivências, talvez até na nossa sorte.
A vida é ritualizar?
O antropólogo britânico, pesquisador de rituais e ritos de passagem, Victor Turner, falecido em 1983, entende o ritual como um símbolo que nos diferencia de outros animais, como a capacidade de imaginar, representar e de produzir as próprias simbologias e códigos. Se formos para o dicionário tradicional, a palavra se traduz como um conjunto de práticas consagradas por tradições, costumes ou normas, que devem ser observadas de forma invariável em determinadas cerimônias.
Já na vida real, quando a linguagem ganha vida própria, ritualizar ampliou os sentidos. Dezembro, por exemplo, se tornou um símbolo de confraternizações de trabalho e amigos, mesmo que você não seja cristão/ã. É tão ritual reunir todo mundo que quando não pudemos nos encontrar na pandemia de covid-19, fizemos isso por vídeo chamada. Mas, não nos satisfazemos com ritos só nas datas grandiosas.
Chamamos o conjunto de práticas para dormir bem de ritual do sono. Se você e sua família todo domingo comem brunch juntos, com certeza alguém já falou "é nosso ritual". Ao que parece gostamos dessa ideia de criar uma rotina com cara de especial. Há quem culpe o capitalismo, mas na realidade fazemos esses movimentos desde que existimos enquanto grupo social. É uma necessidade humana criar comunidade e alguns antropólogos já observaram isso em diversas tribos afastadas do nosso estilo de vida. O sistema econômico atual junto com o marketing "apenas" perceberam nosso apreço e acrescentaram desejos de compra.
Resisto a ideia de abandonar algo tão nosso porque foi capturado pelo marketing ruim. Os rituais são como memória do povo, também uma forma antropológica de enxergá-los, e acontece quando nos reunimos para torcer pelo Brasil na Copa ( e perder juntos também) ou para comer pavê e papear. Além disso, também são parte da nossa construção de identidade, nesse caso é uma visão mais alinhada à psicologia. Na virada de 2001 para 2002 não fazia ideia do que estava construindo ao escolher uma roupa diferente do costume; enquanto buscava minha individualidade e o meu lugar naquela família que pensava na sorte até ao escolher os pratos da ceia, encontrei o nosso elo, o que também me diz quem sou.
Pequenas grandes lembranças
No filme Tudo acontece em Elizabethtown (2005), a personagem da atriz Kirsten Dunst é uma comissária de bordo que tem apreço por momentos singelos dos quais, ela acredita, podem se tornar grandes memórias. Por isso, quando algum deles acontece, ela mexe as mãos como se estivesse com uma câmera fotográfica e finge registrar o feito (imagem abaixo). Nos tempos atuais, procuramos fazer isso com o celular, mas por várias razões que não vêm ao caso aqui, a fotografia se tornou uma representação do status e não de lembranças.
Entendo perfeitamente a personagem, até já a repeti em alguns momentos. Tenho encantamento e apreço por esses momentos que parecem banais e pela vida em si, a forma como tudo vai se costurando. Não sei se por isso, sou adepta de ritualizar alguns hábitos a fim de ter um cotidiano mais suave e sou do time que ama dezembro e todos os rituais envolvidos.
Por outro lado, se o ritual é sobre formar comunidade e onde nossos laços se encontram, é nesse mês permeado de confraternizações que haverá a presença da ausência de quem não está mais conosco. Seja por mortalidade ou por fim de relações, o luto se apresenta e ganha peso nos momentos singelos.
"Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina", escreve a escritora e jornalista Joan Didion no seu livro O ano do pensamento mágico (2005), onde conta sobre seus dias após a perda repentina do seu marido, às vésperas do Réveillon de 2003, com quem estava há quase 40 anos.
Quem fica na ausência
Desde 2020, estamos ainda com um luto coletivo pela pandemia. No Brasil, perdemos quase 700 mil pessoas nesse período. Para os que ficaram, independente da causa da morte, o vazio dá peso às datas festivas. "As pessoas que perderam alguém se sentem desamparadas porque se consideram invisíveis. Eu me senti invisível por um período, incorpórea.", também revela Didion. Para suavizar a dor, não por coincidência, também criamos rituais. Os da despedida variam de acordo com as tradições e religiões de cada grupo, mas todos eles envolvem o amparo. Alguns levam comida, outros ligam todos os dias e há quem se sente em silêncio ao lado dos enlutados.
Buscamos resolver a ausência com presença. Mesmo individualmente, a vida vai se impondo com o corriqueiro e vamos colocando nosso eu de volta no mundo. O tempo é de cada um. Pode levar dias ou anos. Durante o processo e depois dele, quando tudo parecer apenas uma lembrança distante, vão ser os registros imaginários, mesmo sem você ter feito os movimentos a la Kirsten Dunst, que irão fazer os vazios serem ocupados.

Na saudade, procuro viver os ritos como homenagem. Perdi vovô Zuza aos 5 anos, mas debulhar feijão verde ou entrar em um quintal cheio de plantas sempre será nossa conexão. Vovô Reginaldo, foi quando eu tinha 10 anos. Nunca mais ouvirei o barulho do traque de massa, um tipo de fogos de artifício, ou ver um chocolate em formato de moeda sem lembrar dele. Há quase 10 anos, vovó Maria deixou comigo a lembrança do almoço com cozido (prato tipicamente pernambucano) e do chá na hora que algo aperta. Como tudo isso aconteceu? Ritualizamos. Por isso os repito, para encontrá-los.
Encontro do passado e futuro
Mas, não é apenas do passado que o ritual se alimenta. A gente muda, o mundo muda, a vida muda e assim novos ritos surgem. A celebração de um casamento hoje precisa acontecer de forma que abrace uniões de pessoas do mesmo sexo, expressões foram deletadas para não ferir grupos diversos, e nós, enquanto indivíduos, vamos precisar encontrar os nossos próprios a fim de garantir nossa identidade. Meu Réveillon, além de roupas coloridas, hoje conta com uma meditação especial. A ceia de Natal da família inclui opções vegetarianas e sem glúten para alimentar todos, sem exceção.
Só precisamos nos manter atentos a um risco. Nas grandes transformações tendemos a abandonar o ato de fazer os rituais - e não o ritual “ruim” - como forma de romper com as estruturas tradicionais anteriores e isso não é necessariamente bom. Foi em um movimento desses que os partos naturais perderam espaço para as cesáreas agendadas e que saímos da cozinha e passamos a comer industrializados maléficos à saúde. O filósofo sul-coreano, Byung-chul Han, autor de livros como Sociedade do cansaço (2010) e O desaparecimento de rituais (2021), defende que "o desaparecimento dos rituais faz com que a comunidade desapareça e que nos transformemos em indivíduos perdidos em sociedades doentes e cruéis.".
O vídeo é da Noite dos Tambores Silenciosos, em Recife, um dos rituais mais lindos que já presenciei. Presente, diverso, ancestral, tudo ao mesmo tempo.
Quanto mais rompemos com nossas humanidades, mais dolorosa a jornada. Não há dúvidas de que estamos todos sofrendo nesse momento do mundo e que todos buscamos alguma mudança. A questão é que não faremos isso sozinhos e ao tentarmos e não conseguirmos, nos frustramos. Solitários e com a sensação de incapacidade, nos afundamos em um ritual de afastamento, seja através das redes sociais ou de maratonas de séries ou da escolha literal de não tolerar mais ninguém. Muitas relações, depois das últimas eleições, se tornaram frágeis, com suas razões. No entanto, quando um elo quebra, nós também quebramos e é assim que toda comunidade perde a força. Isso favorece a quem? Precisamos (re)aprender a promover o encontro do passado e do futuro e isso exigirá flexibilidade e abertura do coração; assim como participamos das festas natalinas sem necessariamente acreditar em Jesus Cristo.
Mania de ter fé na vida
Antes mesmo do mês de dezembro começar, abro meu bloco de notas e começo as listas dos meus desejos natalinos para lembrar de fazer ao menos os principais. Sugiro confraternização, separo um tempo para refletir o ano, escolho quando vamos montar a árvore de Natal, procuro cardápios para encomendas e receitas, penso como presentear familiares, amigos e pessoas importantes para meu ano profissional e pessoal, escrevo os cartões um a um a mão, escuto a playlist natalina que criei e já sugeri na newsletter anterior, assisto clássicos da época e escolho, claro, minhas roupas e cores para as datas oficiais.
Independente do que dá tempo fazer, se acende em meus olhos uma luz. Posso chamá-la de esperança. Talvez, os rituais sejam isso. Uma repetição de hábitos, parte aprendidos com o passado e parte atualizados no presente, para garantir que a gente siga de mãos dadas em volta de uma mesa, agradecendo, honrando quem veio antes, celebrando e reabastecendo o coração com fé no futuro.
Até semana que vem,
um beijo,
Gabi
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Revéillon usando preto e os rituais de dezembro
Gabi, muito maravilhoso o texto! Parabéns!