Gosto do gosto de casa
A comida na literatura e o documentário Da África ao EUA: uma jornada gastronômica me levaram ao colo das minhas avós
Há alguns dias fui acometida pela covid e depois de uma semana convalescendo entre o sofá e a cama, a cura deu às caras em plena sexta-feira. Levantei e fiz um bolo mesclado de chocolate com laranja e cobertura untuosa com boas doses de cacau. Enquanto a massa ia ganhando homogeneidade, meu corpo ia acompanhando o processo. No fim, com uma fatia ainda quente em mãos, a língua sentiu e declarou: estou recuperada.
É na cozinha que reencontro minha existência quando preciso. A escrita me organiza e desorganiza, como já relatei aqui, mas não é a minha primeira fonte de cura. Para sentar, abrir o computador e escrever o que escrevo, preciso de um café da manhã completo e bonito. Almoço colorido. À tarde, um café preto com chocolate amargo que derrete na boca quente. Boa parte disso, exceto o que não me é possível na vida de hoje, é feito pelas minhas mãos que são donas de palavras e de panelas.
Não lembro quando foi a primeira vez que usei o fogão sozinha. A cena mais antiga nas minhas recordações é de quando assisti uma propaganda na televisão de uma menina fazendo cuscuz, o amarelo e nordestino; eu tinha uns 5 anos. Pedi a vovó Maria para me ensinar e ela foi me mostrando o passo a passo daquele prato que nos era tão comum, quase banal. A cozinha era um lugar movimentado naquela casa, onde passei boas horas da infância. Anos depois, fiz um bolo de laranja com Duda, a primeira babá de um lar longe de vovó, me guiando. Deu super certo, mas não contei a ninguém sobre minhas mãos naquele doce. Duda revelou à minha mãe depois dela a ter elogiado pois a família tinha se deleitado comendo.
"Eles se achavam dignos de uma refeição decente, de uma refeição preparada de marido para esposa e vice-versa. De pais para filhos, de avós para netos.", conta o historiador Michael Twitty no documentário Da África ao EUA: uma jornada gastronômica (2021)
Demorei muito para repetir o feito. Talvez seja porque a gente aprendeu, na minha geração, que cozinha não era lugar da mulher moderna. Eu precisava estudar, trabalhar e ser independente. Não sei ao certo é de onde tiraram a ideia de que cozinhar não é independência. É através da comida, uma das poucas artes permitidas para as minorias no passado, que muitos de nós conseguem narrar a própria história. Quando a gente come, independente da raça ou do credo, garantimos o sustento da nossa existência social, além da do nosso corpo, e entregamos alimento à nossa alma.
Ora, se a comida é a arte ancestral das minorias, é claro que fazê-la tinha de ser visto como miséria. Ainda mais pelo fato de ser uma função destinada às mulheres, afinal seguimos sendo as principais responsáveis pelas tarefas da casa. Se temos condições financeiras, tratando-se de Brasil, certamente iremos contratar ajuda terceirizada - ainda o gênero é quem guia as demandas domésticas, é claro - e aí quem assume o bastão são as empregadas, na maioria das vezes uma mulher negra.
A cozinha só ganha ares de glamour quando se trata de chefs estrelados, de preferência com diploma francês e homem. Mulheres líderes de cozinhas de restaurantes ainda são discriminadas dentro do contexto gastronômico, como aconteceu recentemente com a chef Helena Rizzo no programa de tv MasterChef.
Cozinha sedutora
No livro Gabriela (1958), do baiano Jorge Amado, um dos trunfos da personagem com meu nome é o talento para cozinhar como ninguém, sua comida tinha ares de feitiço. Para tanto, era uma mulher com toda personalidade associada ao estereótipo da mulata; com beleza para dar e vender, sabe gozar dos prazeres do corpo, não dá valor aos costumes e padrões "educados" do seu tempo. Quando reli a obra já adulta, alguns anos atrás, entendi que Gabriela foi julgada de forma errônea pelos leitores, em uma época deveras conservadora, no auge da sua fama. Nunca foi teimosa no mal sentido, é apenas uma pessoa consciente do que lhe faz feliz e vive de acordo com isso.
Neste contexto de Amado, a cozinha ganha uma referência bem distante da dona de casa com a obrigação de servir o outro, mas mantém a ideia da mulher seduzindo quem ela deseja através das suas receitas. Gabriela, disruptiva como só ela, não era esposa de ninguém, mas fazia não só os homens como toda Ilhéus cair de amores por seus pratos. Há quem defenda o poder sentimental e sedutor do alimento, como boa cozinheira não ouso duvidar do poder de comida alguma.
A escritora mexicana Laura Esquivel parece também seguir essa crença. No seu livro Como água para chocolate (1983), a protagonista Tita tem um talento mágico na cozinha. Com muitas doses de realismo fantástico, o que é servido na casa da personagem pode causar apaixonamento ou dias de choro sem controle. Já escrevi sobre essa obra aqui, na época do clube do livro, associando o tema à paixão.
Talvez tenha sido quando persistimos em uma relação menos afetiva com a comida, que também deixamos de lado os encontros em volta da mesa mesmo em família negras cuja cultura sempre foi se reunir em torno do alimento. Por tabela, se esvaiu um pouco da nossa alegria e da nossa conexão com o outro. Enquanto pensava nessas perdas, me veio à mente que usamos a palavra "feed" para a página dos posts das redes sociais. Não sei se você sabe, mas essa pequena palavra em inglês quer dizer "alimentar". Anos de cozinhas ignoradas nos trouxeram para um vazio emocional que se alimenta de imagens das vidas dos outros e conteúdos produzidos, não acredito que seja mera coincidência.
"É ao redor da mesa que muitas histórias são criadas e heranças são passadas.", no documentário Da África ao EUA: uma jornada gastronômica (2021)
Mesmo com a cozinha me abastecendo e as minhas mãos curando meu corpo através das panelas, também procuro no feed, um alimento que preencha meus buracos. Algo que abrande a dor de não ser como se espera que um ser humano seja nos nossos tempos. Encontro, inúmeras vezes, mais vazios e muitas comparações dolorosas. Noutras, descubro a história do acarajé, um post enaltecendo a pamonha, curiosidades sobre frutos e legumes brasileiros não tão conhecidos. Esses últimos me dão esperança.
Mão na massa
Além da busca por alimento nos feeds, o distanciamento das cozinhas nos aproximou dos produtos industrializados, ultraprocessados, lotados de açúcar dos mais variados tipos, de sal, gordura hidrogenada e realçadores de sabor. Se algo que vai nos alimentar precisa de realce, é porque não vai cumprir o papel de sustento do corpo e nem da alma.
Só adulta voltei a sujar as mãos na cozinha. Entre os 9 e os 25 anos "apenas" assisti com encantamento os programas de culinária na televisão, vi meu pai se aventurar aqui e ali em algumas receitas e minhas avós seguirem nos preparando as iguarias que lhes eram tradicionais. Por obra do destino e do meu corpo, em meados de 2013 descobri intolerância à lactose, naquele momento severa, e sensibilidade não celíaca ao glúten. Para ambos os casos, os industrializados pioravam meus dias ruins.
Foi assim que relembrei os tempos de vovó e fui fazer comida, dessas reais. Não sei se foi coincidência, mas perdemos vovó Maria naquele mesmo ano, um mês antes do início dos meus sintomas. Com ela, partiu a receita do cozido com pirão. Nunca imaginei que precisava registrá-la, me arrependo até hoje e quando como essa iguaria pernambucana, eu a reencontro. Talvez seja uma boa ideia aprender a fazer o prato. {Sim, escrever este texto está me exigindo fôlego e lágrimas, mas ela está me guiando. Não tenho dúvidas}
O cozido de vovó voltou a minha memória, infelizmente sem comê-lo, também na semana da covid. Nos dias de repouso, assisti a minissérie Da África aos EUA: uma jornada gastronômica (2021), no Netflix, e em um dos episódios, Stephen Satterfield, escritor, produtor e empresário americano, visita Benim, um país africano bem pequeno de onde saia a grande maioria dos navios negreiros na época da escravidão do povo negro. Lá, Satterfield investiga as influências da culinária local na comida americana. Em diversas cenas, ensopados me remeteram ao tal cozido.
{Agradeço especialmente ao
por ter sugerido esta série e ter me dado a fagulha para escrever sobre comida. Sinto imensamente por ele não estar no Rio justamente enquanto vivo esta jornada.}Além disso, o pirão, uma iguaria que, no Nordeste, consiste em cozinhar a farinha de mandioca com o caldo do cozimento do prato principal, aparece com outro nome quando ele visita uma comunidade que vive sobre as águas em uma região de Benim. Este local os ajudou a se proteger depois da libertação dos escravos. Recife também está rodeada de água e tem pessoas em situação de vulnerabilidade morando em palafitas nas áreas ribeirinhas, como chamamos as margens dos rios e mangues que contornam a cidade. Infelizmente, estão com menos fartura que os ancestrais. Me parece que a liberdade não aconteceu ainda no Brasil, não por inteiro.
Como não somos alimentados só por comida, me deixou também muito satisfeita assistir uma produção americana com a apresentação de um homem negro fiel a sua personalidade. Stephen não tem nenhuma dose do que esperamos do americano televisivo. Ao contrário da clássica expressão efusiva, ele passa os quatro episódios em admirável tranquilidade e discrição com a voz baixa e firme. Se vulnerabiliza, se emociona, abraça, olha no olho. É muito bonito ver essa coesão acontecendo também com quem ele entrevista e traz para a cena (confira com os próprios olhos, por favor!). Me emocionou encontrar uma pessoa com características, aparentemente, tão próximas das minhas, e me lembrou uma fala do James Baldwin, escritor, americano e negro, no livro Notas de um filho nativo (1955).
“(...) sei que o momento mais crucial da minha formação foi aquele em que fui obrigado a admitir que eu era uma espécie de bastardo do Ocidente; quando traçava a linha do meu passado, eu não ia parar na Europa, e sim na África. E isso quer dizer que, de alguma maneira sutil, de alguma maneira muito profunda, eu era obrigado a encarar Shakespeare, Bach, Rembrandt, as pedras de Paris, a catedral de Chartres e o Empire State Building com uma atitude especial. Essas criações não eram realmente minhas, não abrigavam minha história; seria inútil procurar nelas algum reflexo de mim. Eu era um intruso…”
De volta às raízes
Muitos chefs modernos e restaurantes têm seguido os passos do que Stephen fez no seu documentário. Neles encontramos receitas memoráveis nos cardápios, no Recife vale ir no Seu Luna, Ca-já, Oficina do sabor, Reteteu, São Pedro, Arvo e muitos outros. Como resultado, entregamos novas referências para as crianças e adolescentes, trazemos para a mesa o legado de povos ancestrais e originários e, por tabela, diminuímos a sensação de intrusos como a traduzida por Baldwin.
Quando voltei à cozinha, foi como encontrar minhas raízes. Minha outra avó, dona Salete, é a rainha dos bolos. Todos os que ocuparam minhas mesas de aniversários infantis foram produção dela. Lembro até hoje de um em formato de flor tipo uma margarida e de outro moldado como um balão junino porque comemoramos em junho, juntando o meu dia com o da minha irmã. Os convidados chegavam nas festas curiosos para ver a ideia do ano de vovó.
Toda semana, nas sextas, faço um bolo. Cura as mazelas todas da vida e nada mais justo do que fazer uma limpa semanal. Quando tiro do forno e coloco na mesa, sinto vovó Salete bem pertinho de mim. E amo trazer para mesa os amigos e os familiares para degustar junto comigo. Dona Salete faz o mesmo, é conhecida em todo lugar que mora. Além de tudo, Vovó come como eu, abraçada ao prazer e com volume. É uma alegria quando estamos juntas em alguma refeição.
Deve ter sido por essa razão que quando assisti a série Da África aos EUA: uma jornada gastronômica (2021), me senti em casa. Fiz um passeio pelas memórias, reencontrei tantos pratos para além dos citados aqui, tive vontade de estar naquelas mesas, a saudade apertou ainda mais. A comida é o ponto de encontro da minha família, acredito que da de todos nós. Quando adoeci, minha mãe mandou uma mensagem dizendo: faça um caldo de feijão, é bom para curar. Eu fiz e mandei a foto, ela ficou satisfeita.
Baby, baby, baby/ I'm coming home/ To your tender loving (baby, baby, baby/ Estou voltando para casa/ para o seu afetuoso amor - tradução livre), música "Coming home", Leon Bridges
Comer comida de verdade, ainda mais junto dos bons, é entregar ao corpo uma mesa farta de nutrientes, amor, afeto e o cuidado. É provocar conversa ativa com todas as línguas sentindo os sabores, algumas reclamando falta de sal e outras dizendo que está bom assim. É a lembrança espontânea de uma pessoa especial ou mesmo de um complemento: "um sorvetinho aqui cairia bem, né?". E quando tudo isso acontece de forma afetuosa, nossa existência transborda. A gente se alimenta de tantas coisas nesse cenário que acaba nem sobrando espaço para a gula. Esse é o feed que a gente precisa abocanhar.
Recomendo fortemente, se você gosta desse assunto:
“Outra cozinha” também está aqui no Substack, acompanhe no
!Avisos
Na próxima segunda-feira (02/10) não haverá entrega da newsletter, pois estarei em uma semana off de trabalho. O textão de hoje compensou, né?
Para se tornar assinante premium e receber a newsletter toda semana, clique abaixo. Custa apenas R$10 por mês! Vem!
Eu abri este link para leituras de assinantes gratuitos e visitantes porque gostaria que minha família pudesse ler e também acredito que o assunto seja relevante no que tange a ancestralidade e a cultura brasileira. Agradeço a compreensão desde já dos assinantes premium.
Se você quiser me apoiar de outras formas que não seja financeiramente, espalhe este texto por aí e/ou indique meu trabalho como escritora e jornalista. Seja rede, ponte, afeto, assim como a comida.
Uma semana cheia de comida boa para nós.
Um beijo e até a minha volta,
Gabi
Como amo esse assunto! Seu texto me levou para a cozinha sempre movimentada da casa dos meus pais. Comida é muito mais que comida. Eu cozinho desde criança e vejo como esta relação com os alimentos me ajudou e ajuda a ter muitas percepções no corpo e nas relações através da comida.
Essa reflexão me lembrou minha avó e todos os pratos que eram especiais quando preparados pela mão dela 💛