Quem já esteve perto de fronteiras geográficas, especialmente entre países, costuma fazer uma brincadeira que é colocar um pé de cada lado da linha separatista e assim afirmar que está ocupando dois territórios ao mesmo tempo. Trago como uma afirmação, mas nunca presenciei o tal feito. Em filmes e livros a cena é bem comum e eu acreditei nela porque faz sentido; é uma chacota imperdível com pompas científicas já que segundo o princípio da impenetrabilidade da matéria, uma lei da física, nenhum corpo é capaz de ocupar dois lugares distintos no espaço.
A brincadeira, claro, não inverte a lógica da física. Mas, na ordem do inconsciente e dos devaneios da nossa mente, tanto no espaço quanto no tempo, somos sim capazes de ocupar lugares distintos simultaneamente. Longe de mim colocar dúvida na ciência, não é essa a intenção. Busco apenas explicar o que senti durante os três dias em que estive em Londres nas férias recentes. Fui, ao mesmo tempo, a Gabriella de 2024 e a de 2011, no mesmo exato ponto do gps. Duas mulheres distintas vivendo o que os adultos já alertavam enquanto ela existia na faceta adolescente. Aos 36, tendo noção do correr dos anos, a velocidade em que tudo passa na vida já não me escapa. Não era essa "sabedoria" a novidade.
É que ali, nas ruas cheias de Notting Hill, alcancei a materialidade do quanto mudei e do quanto ainda sou quem sou. A distância entre as duas visitas à cidade, sendo a primeira delas longa e mais íntima e a segunda equivalente a um café rápido, fez a fronteira, neste caso entre as minhas múltiplas personas, ser encontrada como se estivesse em "negrito". Além disso, fui exposta a uma Londres diferente, ainda que um pouco igual. Na minha ilusão juvenil acreditei que a cidade estaria a mesma quando finalmente pisasse lá novamente. Conjecturei sobre como o meu novo eu olharia aquelas ruas e esqueci como seria vista de volta e qual energia estaria no ar.



Me senti estrangeira entre os buracos de Camden Town e a multidão saindo da estação do metrô. Foi risível meu traquejo ou falta dele. As lojas seguem as mesmas, as camisetas com piadas repetidas, as pulseiras com olho grego - hábito adquirido lá, uso até hoje -, a estética underground, Amy Winehouse cantando em muitas caixas de som. De alguma forma, no entanto, algo mudou. Coloco na conta do turismo intenso e instagramável.
Já quando sentei na poltrona do café Nero, em uma unidade pertinho de onde foi minha estadia em 2011, olhei pela janela e minha sensação foi de estar em casa. Ao entrar na rua em que morei, senti a paz. A parte residencial ainda era um deleite. Ali voltei a pensar que Londres ainda é para mim, ainda pode ser minha. Mas, caberia meus sonhos? Minha vida de hoje? Minha rotina atual? Tudo isso vinha em avalanche na minha mente mesmo que sequer exista, de forma palpável, uma mudança de cidade programada. As indagações eram mais sobre as fronteiras, quase uma conversa entre as minhas duas versões demarcadas, do que sobre montar um plano de ir embora.
Minha alma viveu intensas dicotomias nas ruas, nos restaurantes, na língua, na educação e na falta de êxtase inglesa, no silêncio absurdo do Hyde Park… Tive dificuldades de responder às perguntas do meu marido, de dialogar, de fazer escolhas. Quem eu era ali, afinal? Em 2011, cheguei lá, uma jovem de 22 anos, sozinha e com muita vontade de ver o mundo. Nos dois primeiros dias eu chorei de saudade do que me era familiar. Me chamei de louca por ter inventado a tal aventura.
Aí, abri o livro Um dia (2009), do britânico David Nicholls, e na primeira página tinha escrito "14 de julho, Earls Court". Estava neste mesmo bairro, nesta mesma data. Achei coincidência demais. No dia seguinte, aprendi a usar o metrô e abri o peito. Mais de um mês depois, voltei para Recife aos prantos. Queria ficar. E agora? Ainda quero ficar? Ainda gosto daqui? Essas perguntas me rondavam enquanto observava o número de turistas triplicado tornando tudo mais barulhento e volumoso, nem um pouco parecido com a persona da Gabriella de hoje. Talvez nem daquela época.
Em parte, essa busca interna era também efeito do texto sobre ser forasteira, publicado aqui mês passado. Nele falei sobre as mudanças impostas pelo destino, mas, ao longo da vida adulta, sempre me perguntei onde moraria se pudesse escolher. Tenho medo da resposta. Não é fácil partir e nem chegar. Ser andarilha carrega algo de lúdico, bonito, atraente e também de dureza, solidão e cansaço. Dizer, na minha língua, com minha própria boca "quero morar em tal lugar" implica em bancar o perrengue envolvido no pacote. E neste caso, eu mesma terei feito a compra, o peso é outro.
Neste caso, não determinar um lugar é uma escolha de qualquer forma. A confusão, a qual ainda estou sentindo mesmo dias depois de "ocupar" dois lugares ao mesmo tempo, pode estar justamente aí. A experiência me fez pensar que existir é semelhante ao retratado no filme de ficção científica A origem (2010). No roteiro, as decisões e espaços são modificados através de sonhos e sublimações.
Na vida real, ao determinar um quadradinho para marcar o "x", seja sobre uma cidade, um emprego ou ter ou não filhos, já é criar uma realidade. Aquele instante é registrado, aquela experiência é vivida e então um catálogo se forma. Por aí, em lugares onde já estivemos, em livros já lidos, em relacionamentos passados, colecionamos muitos eus nossos. Quando se encontram, por algum acaso, quem se impõe é a lei da química: na natureza nada se perde, tudo se transforma. Sigo confusa porque estou em mais uma metamorfose. Talvez o próximo eu tenha coragem de dizer onde quer morar. Vai saber! Esperemos os próximos capítulos.
A música de hoje não poderia ser outra. As britânicas que amo desde minha persona de 11 anos de idade. Ótimo também para rever a estética da época. haha
PS: Queridos leitores, voltei das férias no fim de semana. Levei uns dias para organizar a cabeça e a rotina. Entre meados de maio até esta semana, não escrevi nadinha. Decidi deixar as experiências colarem na pele e no corpo sem me intrometer com palavras. Quando passamos um tempo sem fazer o nosso trabalho, retornamos meio truncados. Foi como senti. Desculpem o atraso da semana - nosso dia oficial segue sendo a segunda-feira - e vamos em frente.
ps: certamente esta viagem vai render textos, se quiserem dicas ou saber algo específico, por favor me enviem a pergunta. O roteiro foi: Amsterdam, Paris, Londres. :)
Uma semana menos confusa por aí,
Gabi.