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Existe um livro que nunca terminei de ler e ainda assim ficou marcado na minha memória para sempre. A culpa é do título: Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias (1999). Nele, o autor, o jornalista americano Philip Gourevitch, relata o genocídio de Ruanda ocorrido em 1994. A minha não finalização, no entanto, não foi pela narrativa duríssima e nem pela minha pouca idade na época da leitura, por volta de 17 anos. Simplesmente esqueci o dito cujo largado na mesa de cabeceira de uma pousada em João Pessoa; era uma viagem com meus pais. Na época não havia Amazon nem Kindle, pelo menos no Brasil, e não consegui achar um exemplar de novo.
Lembrei do título - é o mesmo em inglês, vale avisar - nunca terminado quando li as notícias sobre a fumaça e as queimadas no Brasil nas últimas semanas. Tudo escuro e cinza. Fuligem sobre carros e narizes. Cidades com pessoas trancafiadas em casa. Crianças sem aulas. Voos cancelados. Não dá nem para fugir. As matérias e as cenas me soaram como um aviso: nós e nossas famílias estamos encurralados. Diferente do acontecido em Ruanda, não seremos mortos amanhã, talvez nem mesmo no ano que vem. É um processo longo. O perigo não é iminente, ainda não nos levou a sair correndo pela rua ou a nos esconder em igrejas ou santuários.
O fato de ser duradouro não torna tudo melhor. Esses dias, vi no Instagram uma piada com a nossa própria desgraça. A pessoa dizia algo como "infelizmente o mundo vai acabar aos poucos, não será como nos filmes; então enquanto isso precisaremos continuar trabalhando e pagando boletos.". Esse é o traço mais espantoso do estilo de vida atual deste planeta. O céu mudou de cor. As pessoas mal respiram. E nós? Seguimos calmamente acordando cedo para trabalhar. No almoço com os colegas, quem tem uma rotina comum de escritório pode fazer um comentário do tipo "e as queimadas, hein?" e aí outra pessoa responde "pois é, complicado". Em alguns casos, envolvem falas políticas desastrosas.
Em meio a essas conversas vazias e sem sentido, a vida vai seguindo (ou não). Este é um dos grandes mistérios da humanidade para mim: temer a tragédia tomando uma taça de vinho. Não é julgamento, pode ser bom e pode ser ruim. Só não consigo alcançar o entendimento científico da nossa falta de urgência. Note que falo no coletivo pois também não me movo. Além disso, cultivo sonhos, projetos e histórias a construir como todos nós. É uma forma de sobreviver. Mas, será que não tem outro jeito? Não dá para pelo menos a gente sair gritando na rua com a garrafa de vinho na mão? Seria difícil demais?
Há alguns meses, em razão de uma outra tragédia, a das águas inundando cidades do Rio Grande do Sul, a escritora, com grande repertório em questões ambientais e ficção científica,
, publicou em sua newsletter:A arte criou o mito de Cassandra. Uma história que pode oferecer alguma liga imaginária a essa quantidade mal-ajambrada de fatos. A sacerdotisa que fez a previsão de um acontecimento terrível, algo que poderia ser revertido. Mas ninguém escuta Cassandra. Ninguém a leva a sério. E o acontecimento terrível torna-se real e engolfa a todos. (A garganta de Cassandra: enchentes no Rio Grande do Sul)
A fumaça, a água, o calor, o frio. Todos são Cassandra gritando loucamente e quem escuta somos nós, os que não levamos a sério. Ontem, eu e meu marido fomos dar uma volta na praia e vimos mais um domingo de céu cinza sem explicação. No aplicativo de clima estava o desenho do sol pleno. Pode ser efeito das queimadas, pensamos. Uma angústia toma conta do passeio. Olho o horizonte e me vem a palavra: fim. Quem quer pensar nisso? Quem dá conta de pensar nisso? Ainda tenho tanto a fazer. Acredito que ainda haverá humanidade daqui a cem anos ou mais. Somos bons em nos adaptar. Com saúde e esse tipo de coisa, já não sei.
Outro dia, uma amiga me mandou um áudio no Whatsapp comentando que percebeu algo muito importante: em 15 anos teremos 50/51 anos. Perguntei: e agora? O que faremos? Já estamos cientes de como passa rápido, então qual será nosso objetivo? Iremos por qual trajeto? Qual será sua persona? Primeiro ela disse não sei e depois vou ligar mais o foda-se. Não obtive respostas nem na minha própria mente. Fiquei encasquetada com isso. Não consigo pensar em mim mais velha? É uma questão de idade ou de futuro?
Semanas depois, falei para meu terapeuta: não sei mais pensar no futuro; tenho medo, me paralisa. Se eu realmente ouvir Cassandra, vou deixar muitos sonhos para trás. Passamos a sessão inteira falando sobre isso. Chegamos a ideia de que precisamos pensar em novos sonhos, novas coisas a alcançar. Eu e o coletivo. Foi curioso porque há pouco mais de um mês, Caetano - o querido que fez a leitura crítica do meu livro em andamento - me sugeriu pensar no amanhã distante e para isso indicou a leitura de ficção científica. Não é meu gênero favorito de leitura, prefiro no formato filme. Então, primeiro fui para a tela e rei Ela (2014) que retrata um relacionamento amoroso entre um humano e um Sistema Operacional (hoje chamamos de IA). O retrato de um mundo solitário, a meu ver. Agora comecei a ler o Despertar (1987), da americana Octavia E. Butler, e nas primeiras páginas a personagem está em plena solidão. O futuro seria estar só em meio a fumaça e conversando com máquinas?
Eis que, por coincidência ou algoritmo, nesta semana, antes do céu cinza na praia, vi um post da revista Quatro cinco um, falando de um ensaio da escritora e historiadora Rebecca Solnit. O título? Precisamos de novas histórias sobre o clima. Parece que meu terapeuta tinha razão.
"A agitadora social adrienne maree brown diz que o ativismo climático tem algo de ficção científica: “Estamos moldando um futuro que queremos, mas ainda não conhecemos. É uma batalha de imaginação”. Para fazermos o que a crise climática exige de nós, precisamos de histórias sobre um futuro habitável, retratando o poder do povo, nos motivando a fazer o necessário para o mundo de que precisamos.", Rebecca Solnit na Quatro cinco um.
Ainda estou com dificuldades de adentrar nessa proposta da Rebecca e de imaginar esse futuro, de vencer a batalha e criar novos rumos. Quando lembrei do livro Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias (1999) foi em um tom de fracasso e incerteza. Mas, apesar de não ter lido até o fim, sei que Philip Gourevitch revela nas suas páginas como o povo tutsi conseguiu manter parte dos seus vivos diante de um genocidio equivalente ao Holocausto na II Guerra Mundial. Fizeram isso sozinhos e juntos. Talvez seja um pouco do que tentamos hoje através das redes sociais, da I.A., dos memes, de desabafos como esse.
Na prática, todos nós ouvimos Cassandra gritar. Sabemos da ameaça. Na falta de uma ideia do que fazer, fugimos. Diante do medo, sonhamos como sonhávamos antes. Não estamos prontos para o próximo passo. Talvez não haja tempo para aprendermos a sonhar sonhos novos calmamente. Não sei. Hoje sigo sem respostas. Quem sabe amanhã? É urgente.
Queridos leitores, estou numa temporada de dores e isso está me fazendo ter menos energia e criatividade para a escrita. É a vida de quem convive com dor crônica e coisa e tal. Logo mais tudo se ajeita, é só uma fase mais para dentro e ela é importante para meu trabalho também. Aprendi a aceita-la. Enquanto isso, para ser justa, pausei a cobrança mensal das assinaturas pagas. Pretendo continuar o envio semanal, mas pode ter alguns buracos como semana passada. Obrigada pela atenção, compreensão e apoio. :)
Uma semana com menos fumaça.
Beijos
Gabi
querida <3 um abraço em vc e melhoras!
Gabi, estou com saudades de você e que bom poder te ler com tanta lucidez. Te mando um abraço apertado.