Em janeiro, no clube do livro que participo (oi, Chicas) o escolhido do mês foi o Oração para desaparecer, da Socorro Acioli. Confesso, não foi o meu voto. Vencida, comecei a leitura sem muita expectativa. Em poucos minutos fui capturada por aquela mulher meio morta meio viva saindo da terra em Portugal. O roteiro cheio de mistérios, fé, romances e lendas, cujo os detalhes não carecem de explicação lógica, me levou para o mundo da magia. Que delícia!
Nem sabia que estava precisando de uma viagem dessas, ainda bem que embarquei.
A obra calhou de não só me abastecer, como me ajudar a entender uma ansiedade esquisita que vinha me perseguindo. Assim sem mais, mesmo nas melhores situações e com as melhores pessoas, me vinha um assombro, uma angústia. A situação vinha acontecendo desde o ano passado. Como quem lhes conta essa história é uma mulher escritora com fortes tendências à obsessão, como costuma ser com quem tem essa labuta, saibam que desde o primeiro episódio me perguntava: o que danado é isso? Dado os reboliços vividos por aqui desde 2020, poderia ser muita coisa. Nada, do já óbvio repertório da terapia, dava conta de explicar.
Bom… Quem acende a centelha - neste caso prefiro essa palavra do que gatilho - é o cansaço de polêmicas, tretas, problematizações e afins. Não basta as notícias ruins, tendemos a ampliar tudo, repercutir até a última gota, postar pitacos e exigir muito de todos os envolvidos com a arte, a comunicação e com a própria notícia ou fofoca. Como tudo pode ser ainda pior, a literatura e a filmografia contemporâneas decidiram se apoiar em uma espécie de roteiro escolar. Se não deixar uma lição de moral ou social ou uma raiva do mundo, não vale.
Não estou apoiando influencers alienados da realidade, gente defendendo a meritocracia nem discursos incompatíveis com as leis e mínimos comportamento de respeito às minorias. É sobre outra coisa. A gente precisa de espaço para fugas e para um descanso. Para mim, a arte faz (fazia?) parte da cura necessária a todos nós de tempos em tempos.
Acho genial obras como The White Lotus, Triângulo das tristezas e crônicas irônicas por aí e dou inúmeras risadas assistindo ou lendo. Rir, no entanto, não é sinônimo de leveza. Este tipo de produção, crítica aos nossos tempos, precisa e deve existir. Para refletirmos. Nestes casos, a gente ri sentindo um ressentimento, uma sensação de impotência, se perguntando "foi isso que a gente se tornou?". Não é descanso e em uma rotina automatizada sequer percebemos a ausência dele.
Tanto que demorei para perceber meu problema. Afinal, eu leio, eu dou passeios, viajo. Descanso?
Eu quero dar outra risada. Daquelas de quando uma criança fala algo completamente sem sentido. Ou quando a gente cai na rua, não se machuca e percebe o ridículo que passou. Ou de um diálogo em uma série sobre nossas pequenezas patéticas. Bobagens, a gente precisa de bobagens. E se engana quem pensa que isso não nos deixa mais sábios. Nem precisava ensinar nada para valer a pena… até porque gente chata essa que só pensa em conhecer mais, aprender mais, criticar o século, consumir o tipo tal de arte, aumentar o alcance dos seus posts.
Aprendizes
Mea culpa aos chatos, não discordo deles no ponto de que a arte tem sim um papel educador, só discordo da literalidade. Ela cura, amplia nossa visão de mundo, lampeja nossos neurônios e aflora os sentidos sem nos tratar como estúpidos. Essa foi, inclusive, a razão para não ter gostado do filme Barbie (lá vai ela polemizar). Senti o tempo todo como se os diálogos tivessem sido construídos para se tornar um vídeo nas redes sociais e, portanto, eram plastificados, montados com cara de maquinário. Nem as bonecas, no mundo delas, devem dialogar daquele jeito.
Um roteiro ou até um quadro cria um fluxo próprio dentro de cada um que se deixa levar pela obra. É uma tarefa árdua para o artista chegar nessa entrega, eu mesma morro de medo de não alcançar esse lugar. Talvez por isso adie escritas de ficção e mesmo do meu livro de não ficção. Prezo por esse esforço porque é cansativo ler didatismo piegas. Oração para desaparecer traz uma pauta bem relevante sobre colonização e povos originários na sutileza da página. Mergulhados no mistério, enxergamos a dor no altar, nem é escondida nem nada. Está no lugar dela, imponente.
Acontece o mesmo quando lemos obras como A filha perdida, Tituba, Humanos exemplares e mesmo na ordem da autoficção como O acontecimento. Em filmes como A pior pessoa do mundo, Malcom and Marie, Aftersun, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Todos contemporâneos e em todos esquecemos onde estamos. O melhor de tudo, nos perdemos da gente mesmo entranhados na vida do personagem. Temos insights da nossa própria vida enquanto ocupamos outros papéis. A arte é um descanso quando a gente termina a obra sabendo muito mais quem somos sem nem perceber o arrebatamento.
Papos cabeça
Minha ansiedade, a da centelha do cansaço, vinha também das conversas. Não é só a arte que anda capenga da magia. Sente em um café e observe. Não tem mais recorte de idade, mesmo os 30- estão rodando em temas pesados, de preferência com comentários carinhosos ao próprio ego, garantindo sua boa imagem. Repito mais uma vez, não é que o mundo esteja facilitando. A cada vez que abro uma rede social ou uma página de notícias, é uma porrada. Mas, não estamos ficando viciados em treta, não? Sinto que as coisas estão passando do ponto.
A carteirinha de uma pessoa bem vista em certos grupos sociais e políticos vem quando a gente fala sobre os problemas ao nosso redor. Mas, e como fica a carteira da saúde mental? Amo conversas profundas com meus amigos, inclusive desabafo com frequência. É bom falar das nossas questões. O novo contexto de mundo, no entanto, pede para, além das nossas, falarmos das dos outros. E ainda com aquela métrica/desculpa de que é preciso deixar claro o peso da realidade. Quando se vê, só falamos do ruim e faltou o tempo do bom. Como a gente dá conta de uma vida que parece ter só a parte difícil?
Se continuar assim, vai ter mais gente ansiosa mesmo, afinal não temos poder algum para resolver o tanto de coisa das nossas individualidades, imagine da coletiva!
Em janeiro, sobrevivi por causa de Cida, personagem do livro de Socorro, e do funk em um show. Me lembrei da maravilha que é um mundo que não exige lógica nenhuma. Em fevereiro, achei que seria o Carnaval meu refúgio. Não foi, deu errado. Depois eu conto sobre essa. O resultado foi não conseguir escrever, afundar num estado melancólico e paralisante, por isso não enviei news semana passada (desculpem por essa). Estou cansada. Precisei reabastecer a alma este fim de semana e ainda falta um tanto para ficar tudo bem de fato.
Acreditei que a fase de renascimento da qual venho passando, especialmente após ajuda médica, fecharia o ciclo enquanto eu lotava meu cérebro do mundo prático e duro. Não será assim, nunca foi. Oração para desaparecer deixou claro, não óbvio, que a gente precisa sumir de vez em quando. Nem que seja através de um livro. Mas, de preferência, indo ali e voltando em breve.
Aviso: escrevi nos 45 do segundo tempo, pode ter uns errinhos de digitação.
Semana passada não dei conta, como já revelei no texto. Faz parte do processo criativo.
bem me lembrou num post que fiz no notes que o descanso é a parte invisível da escrita. É mesmo!Parece maluco recomendar descanso quando, no Brasil, o ano está oficialmente começando. Acredite, é exatamente agora que a gente mais precisa dar espaço as bobagens e ao sono.
Um beijo,
Gabi
Eu me mudei para o Canadá recentemente. Por mais que eu sinta muita falta do Brasil, dos meus amigos, de sentar num bar e ter papos cabeçudos, ao mesmo tempo eu sinto um alívio com o distanciamento (das tretas, das polêmicas). Eu sinto esse descanso que vc fala no texto. Aqui, como tudo ainda é meio novo, eu ainda tô descobrindo como viver nesse lugar e num idioma diferente, eu me sinto meio como uma criança. Fico deslumbrada, sorrio com frequêcia, me animo de verdade com as coisas. É um sentimento bom sabe? Por mais que seja desafiante imigrar e a questão da identidade se perde um pouco, é muito empolgante.
Gabi, também li Oração para desaparecer em janeiro e foi uma coisa boa!