O que nos sustenta?
Não, não é sobre dinheiro. É sobre o que nos mantém vivos com ou sem novo normal
No começo da vida pandêmica houve um fôlego de mudança e de busca por realização. Casais em crise se separaram, pedidos de demissão foram feitos sem dó, pessoas decidiram sair da loucura das cidades grandes e morar no interior. Entretanto, com o caos e o medo se estendendo, fomos perdendo a energia e passamos a adiar resoluções, parte delas sobre nosso bem estar, contando com a justificativa plausível da incerteza.
Depois do isolamento acabar, depois do office voltar para os prédios que não são casas, depois da vacina, das Eleições, dos protestos, da Copa. Daqui a poucos meses completamos três anos de criação de demarcações para a volta da normalidade da vida. Eu sei, para muitos brasileiros já está um tanto corriqueiro, seja pelo trabalho seja pelas festas. Falo aqui, no entanto, do que conhecíamos como normal antes daquele fatídico dia em março de 2020.
Há alguns dias, estava refletindo sobre o meu sono desordenado e sobre o fato de ter aceitado, por mais tempo do que gostaria, a tal dificuldade porque, afinal, o mundo está insano. Como se por isso fosse ok dormir mal. Percebi o quanto isso tem se repetido em outras questões. E não é só comigo; ouço de amigos e de mesas próximas em cafés e restaurantes, leio em grupos aleatórios de redes sociais e até em reportagens. Parece que entregamos os pontos e estamos esperando um milagre já que nenhum dos grandes marcos imaginados fez efeito prolongado.
Ainda não achei a solução ideal do meu sono que na verdade vem sendo atrapalhado por uma crise, a essa altura crônica, de rinite. Mas, entendi que preciso me movimentar para encontrá-la agora, mesmo que o contexto não seja dos melhores ou que a agenda se atrapalhe com a Copa ou que uma nova onda de covid-19 se instale. Precisamos retomar as rédeas das nossas vidas, da nossa saúde e da nossa felicidade possível.
Até porque enquanto a gente esperava o grande dia D, a transformação aconteceu. Já estamos no novo normal e ele deve durar pelo menos mais alguns anos. A vida agora envolve observar os ciclos do Coronavírus, variar entre usar máscara ou não, repetir vacina de tempos em tempos, planejar viagens pensando nessas fases. Talvez em dois anos parte disso se dissolva e a gente até esqueça dessa transição estranha para viver um futuro para o qual ainda não estamos prontos. Talvez a década inteira seja nesse ritmo volátil. A normalidade, portanto, é não saber mais.
Diante disso, vamos esperar o mundo se acalmar para tentar nos acalmar? "Antes da covid-19, a Anxiety and Depression Association of America estimava que 264 milhões de pessoas no mundo inteiro tinham transtorno de ansiedade. (...) Entre os americanos, as possíveis causas apontadas eram a situação financeira, política e relacionamentos interpessoais", conta o psiquiatra e neurocientista Judson Brewer, no seu livro Desconstruindo a ansiedade (2021) (o lemos no clube TPV de outubro). Claro que depois da pandemia, piorou.
Entre as causas, percebem alguma semelhança com o momento atual? Risos.
O mais curioso, para mim, é que essas mesmas questões permeavam as angústias de nós, humanos, em várias outras crises globais. Está em todos os livros escritos no pós II Guerra Mundial, por exemplo. Desde os da escritora italiana Natalia Ginzburg até os do psiquiatra austríaco Viktor Frankl. As amizades, os empregos, o dinheiro, as relações familiares, as palavras mudaram. Até a forma como sentimos o amor e o medo. Nos resta, reagir.
A boa notícia é que nosso cérebro funciona por meio de aprendizagem, por isso somos adaptáveis. "Todos os animais dispõem de ferramentas de sobrevivência. Até mesmo a lesma do mar, a criatura com o sistema nervoso mais primitivo que a ciência conhece (20 mil neurônios no total contra os 100 bilhões do cérebro humano), usa esse mesmo mecanismo de aprendizado", informa Brewer enquanto explica como funciona nosso senso de autoproteção no seu livro. Ou seja, somos capazes de aprender a cuidar de nós e a criar hábitos de bem estar com ou sem o enfrentamento de intempéries no pacote do momento. Não é fácil, mas é possível e nesse momento isso é bastante.
O corpo e a mente inquietos
Não acredito que a ansiedade seja a única razão dos nossos males atuais. No entanto, sei que ela nasce da soma do medo com a incerteza. Tudo que vivemos intensamente nos últimos tempos. Ou seja, ela está fazendo parte da sua rotina em algum momento.
Não quer dizer que seja uma crise, um transtorno ou algo mais sério. Ansiedade é um sentimento e como qualquer outro pode ser funcional, quando chama nossa atenção sobre a necessidade de se preparar para uma apresentação, e pode ser disfuncional, quando esse alerta é maior e mais duradouro do que o necessário e nos impede de agir.
"(...) andava tão estressado que minha ansiedade se refletia no corpo, e a mente a ignorava ou a negava. Ansioso, eu? De jeito nenhum. Eu não.", Dr Judson Brewer que conta sobre o período em que tinha tantos momentos de diarreia que precisou mapear os banheiros da universidade e ainda assim insistia que era um sintoma puramente físico. Tenho conhecimento experimental nessa história, a vivi de cabo a rabo com acréscimo de ter mesmo uma doença física por trás. Se queremos ter mais bem estar, precisamos olhar para nosso corpo e nossas dores de forma mais profunda e aprender a ter hábitos de cuidado com a saúde mental.
Sendo assim, minhas sugestões para nossa reação não será só por um cropped, é preciso uma ação mais completa. A lista abaixo é simples, mas exige empenho, como tudo na vida adulta. Exceto as pessoas com limitações físicas e/ou mentais, todos nós podemos fazer pelo menos uma das coisas sugeridas. Sem desespero ou com metas impraticáveis, por favor. Dê um passo, depois outro, depois outro. No seu ritmo e no seu tempo, comece.
Guia para vigorar (leia como se fosse o ex-BBB Gil do Vigor haha)
Check-up: marque uma consulta médica com um/uma clínico geral. Faça seus exames e volte com os resultados. Mulheres, cuidem da ginecologia e mamas. Homens, cuidem da próstata e urologia. Se teve covid, cheque o coração e artérias. Priorize profissionais cuidadosos, atentos e pés no chão.
O corpo fala: o observe. Onde dói? Está dormindo bem? A digestão está boa? Bebe água? Come vegetais? Faz exercício? Fuma? Faz uso de remédios sem prescrição médica? Ciclos menstruais estão dentro do seu normal? É importante mapear e aqui neste post da Tati tem dicas ótimas sobre isso, inclusive comentei lá meu drama. Às vezes os sintomas de ansiedade são confundidos com sono acumulado; o coração acelera, o cérebro desconcentra, o humor tem variações. Pode ser que você só precise dormir.
Respirar: Os estados emocionais têm ritmos respiratórios diferentes, já percebeu? Por exemplo, quando você está ansioso/a, tende a ficar ofegante e respirar mais curto e se por alguma razão você anda com fôlego curto, vai se sentir ansiosa/o. Portanto, através da respiração podemos influenciar nossas emoções. Ao acordar e antes de dormir, faça algumas respirações profundas, relaxando cada parte do seu corpo começando pelos pés. Se sentir necessidade, ao longo do dia, pause e reencontre seu ritmo mais pacifico.
Presença: quando leio sobre estar presente e a história é sobre monges, logo me irrito. Ser zen em um mosteiro me parece infinitamente mais fácil do que na vida com trânsito e risco de assalto. Minha proposta aqui não é que você entre em devaneio da realidade. É que você saiba o que te faz bem e o que não. Estar conectada/o com seu corpo, sua mente, seu coração de modo que saiba a hora de sair de uma festa antes do seu esgotamento, dizer não quando não quiser fazer algo, arriscar um novo caminho para seu trabalho e por aí vai. Meditar é ótimo e vai ajudar, mas se não cabe na sua vida, busque viver com conexão com quem você é e se respeitar. Ps: pode levar um tempo, já dizia Lulu Santos “Ainda leva uma cara pra gente poder dar risada Assim caminha a humanidade com passos de formiga e sem vontade". Espero que por aí ao menos haja vontade.
O real autocuidado: encontre uma organização para sua rotina. Não podemos controlar muitas coisas externas, mas tem como colocar algumas estabilidades no nosso dia a dia. Ter um horário para dormir/acordar/comer/fazer exercício. Começar a sua manhã de forma mais suave e ter um ritual de sono; não precisa de muita coisa, pode ser um cheiro, um chá, uma música. Para além disso, encontrar amigos, ter hobbies, sair para um date com seu amor ou seu crush, se divertir, encontrar a natureza (mesmo que seja uma praça perto da sua casa), a arte… Está permitido ser feliz, se dê essa opção.
Assim na lista parece tudo muito fácil, não é? Sei que na vida real, exige muito dar o primeiro passo e fazer funcionar a vida saudável. Ouçam a voz da experiência: quando lia essas recomendações, desejava tudo de uma vez. Lutava bravamente e na falha - óbvia - me sentia mais ansiosa e culpada. Esse ciclo fez com que todos os meus problemas se estendessem ainda mais. Então, faça uma coisa por vez. Nosso cérebro simplesmente não dá conta de muitas mudanças ao mesmo tempo, ainda mais quando o solo está instável. Coloco várias dicas porque os leitores podem estar no tópico 1 ou no 5, é preciso contemplar a todos; encontre o seu e siga seu caminho em paz.
Ainda estamos aqui
Na biografia da escritora britânica Agatha Christie há relatos sobre como foi viver no período da I Guerra Mundial. Foi uma época em que ela vendeu muito e por isso tinha prazos para lançar livros novos, precisava produzir e aproveitar a glória. Por outro lado, o marido dela era piloto e estava lutando na guerra, a editora que a publicava foi bombardeada, os amigos iam se perdendo. Então, quando havia um esfriamento bélico, ela fazia questão de jantar fora, ir ao teatro… Há uma culpa nos nossos tempos sobre felicidade, como se fosse errado celebrar enquanto tantas coisas difíceis acontecem. Saiba que é possível ser consciente socialmente, ter empatia, sofrer por algumas questões pessoais e celebrar outras, tudo isso ao mesmo tempo. Use o privilégio que tiver, ele é seu.
Agatha fazia questão de celebrar o que fosse possível. Ela, afinal, estava viva e presente. Nós também.
Importante: saúde é um assunto sério. Se você tem sintomas físicos ou mentais ou alterações comportamentais de forma consistente há mais de 3 meses sugiro procurar ajuda profissional.
Uma semana com mais vivacidade para nós.
Um abraço,
Gabi
Nossa Gabi, que textasso!
Vou salvar e inclusive usar com pacientes. Gostei pacas!
Oi Gabi! Te conheci no evento das newsletters algumas semanas atrás e ainda não tinha comentado nada aqui, mas já amando tudo. Que texto maravilhoso!
Me tocou muito porque tenho pensado bastante sobre isso ultimamente. Tenho a sensação de que só agora estou começando a entender o impacto físico, mental e emocional desse período em pandemia que passou. Sinto que deixei muito dos meus rituais de cuidado de lado sem perceber e quando percebi, já não conseguia mais achar uma forma de voltar a tê-los como parte da minha rotina.
Sigo por aqui tentando retomá-los (literalmente, fiz um planejamento nessa semana haha) e o seu texto e a lista vieram na hora certa. Obrigada por compartilhar! <3