Lá fora se faz uma manhã de sol com toques de calor. Dentro de casa ainda se resguarda a temperatura amena das noites de inverno. É uma terça-feira, meu apetite está de volta e resolvo assar pão e tentar mastigar algo mais consistente que uma crepioca de queijo. Sem dor, decido que é hora de ler; pego o Kindle e busco o título mais atraente para o momento, elejo O segredo da alegria, da americana Alice Walker. Me deixo levar pelo uso da palavra alegria apesar da sinopse angustiante: a história de Tashi, uma mulher africana que passa pelo ritual da mutilação do clítoris e todos os efeitos do depois.
Nas páginas, Walker entrelaça as histórias de personagens - uma aula de diversidade, vale dizer - como Adam, o marido de Tashi, um homem negro americano, Olivia, a cunhada, Lisette a amiga colorida/amante do marido, uma francesa branca, seus terapeutas/analistas, filhos e outros. Leio todos eles, suas dores, prazeres e autodescobertas. Leio o continente africano, a colonização, as lutas e as perdas. Leio, como costuma acontecer com a boa literatura, a mim mesma e os meus sentimentos. Antes mesmo da primeira página, a alegria pela qual estava tomada já impôs o ritmo e a digestão da narrativa. Não foi à toa a escolha do tal título.
Fiz uma cirurgia na sexta-feira anterior à terça na qual a leitura começou. Também era uma manhã de sol, da janela do dentista conseguia ver o Pão de Açúcar, o morro clássico das paisagens cariocas, destacado no céu azul. Estava lá para retirar o último dente siso da arcada de baixo - costumam ser os mais trabalhosos - e dentro de mim se misturavam a sensação de que iria dar tudo certo e a memória traumática da retirada do outro seis anos antes. Além da dor na gengiva costurada em si, na época passei muito mal com os remédios e foram dias de sangue, lágrimas e desgraceira.
Com um intestino sensível, sempre que há a necessidade de drogas mais pesadas, a tensão paira no ar e no meu corpo.
Dessa vez, foi tranquilo como era possível ser em uma cirurgia e foi cansativo como esperado para uma mandíbula com bruxismo. Tomei os remédios e só tive um leve enjoo. Venci, pensei. Parece que os frutos da vida saudável realmente começam a ser colhidos em algum momento. Por isso, naquela terça-feira escolhi ler Walker, estava influenciada pela alegria e pelos analgésicos. Tashi relatando sua dor, sua vulva dilacerada, a perda do seu prazer, do seu orgasmo. E eu sentada no meu sofá com um kindle em frente a uma janela da qual consigo ver os galhos de uma árvore frondosa. Em poucos dias estaria de volta a cadeira do dentista e ele retiraria meus pontos cuidadosamente, pedindo desculpas a cada possível dor causada na puxada da linha; dali em diante estaria apta para voltar à vida normal. Poderia beijar meu marido de novo. Tomar sol na praia que está a três quadras da minha casa.
Não era só sobre o dente. Nem só sobre Tashi.
Entre as páginas, Lisette, a francesa educada com as palavras de Simone de Beauvoir e livre para desfrutar do seu próprio corpo, descreve seu parto, os cuidados, a parteira, a acolhida, o filho vindo ao mundo enquanto sua vulva recebia massagens com um óleo reparador. E eu lia e lia enquanto o analgesico passeava na minha corrente sanguínea poupando minhas gengivas e minha arcada dentária da dor, por tabela me esquivando de "enlouquecer" como acontece a qualquer ser humano exposto ao massacre.
Abro o bloco de notas do celular e escrevo:
Sinto como se a vida que vivo agora, o que conquistei, ainda que tenha me sido dado como uma espécie de herança ou ressarcimento histórico, é um alívio para meus ancestrais. Imagina só! A tataraneta de uma escrava morando no Leblon sem ser empregada doméstica? Sem ser subjugada. Ao mesmo tempo, não sei muito bem o que fazer com essa conquista. Qual o próximo passo?
Termino O segredo da alegria na quinta-feira daquela mesma semana. Ainda estava sol com vento fresco. Mandei mensagem para uma amiga relatando a experiência: "amei o livro, tenho ressalvas com o fim. Mas quem sou eu para contestar Alice Walker?". No dia seguinte estava livre dos pontos. O resquício era - e ainda é - a dor prevista na mandíbula devido ao bruxismo. Ainda assim, segui, na tarde daquela sexta-feira, perambulando alegre por aí. Fui a pé fazer a sobrancelha, passei na livraria, no mercado, cozinhei. Que alívio, nem sangramento, nem diarreia pelos remédios, nem ansiedade.
Nos trajetos andarilhos, minha mente ia fervilhando enquanto percebia a quebra do ciclo da dor de quem veio antes de mim e por que não de Tashi? Meu corpo está bem. Êxtase. Meu terapeuta comemorou. Meu marido. Minha mãe. Celebrei meio cabreira. Deixei para pular de felicidade apenas no sábado quando voltaria com as minhas caminhadas na praia. Se conseguisse fazer isso sem sintomas, seria uma festa
.Ao conquistar a meta, me dou de brinde sentar num banquinho que fica do lado do "aparelho" público de exercícios na beira mar. Uma senhora, já posicionada na pontinha, falava com forte sotaque mineiro com seu marido sobre o banho de mar estar liberado - hoje não tem bandeiras vermelhas, grita - enquanto ele fazia alongamentos nas barras locais. Eram familiarizados com a vida carioca e ao mesmo tempo estrangeiros no território, assim como eu.
Também estávamos, nós duas, alinhadas no vestuário vestidas com roupas de ginástica e tênis. No meu caso ainda havia um boné para proteger os olhos míopes do sol e uma jaqueta amarrada na cintura. Ela me olha e pergunta a hora, respondo. Depois ela se vira e lança:
-Você trabalha por aqui?
Dou uma leve risada e respondo:
-Não, não, eu moro aqui.
Ela se espanta dado que só me devolve um "ah!" e vai tagarelar com as colegas da quadra de vôlei. Me levanto e sigo meu caminho. Triste e puta da vida. Tenho em mente uma resposta ideal para essas perguntas e é: por que você deduz que trabalho aqui? Nunca consigo usar e sempre tenho raiva de esquecer. Volto para casa com menos alegria do que fui. No sofá, suada, chorei no ombro do meu marido e fui tomar café da manhã; pouca coisa me tira a fome.
No mesmo dia, na tarde quente, fui ao lançamento do livro de uma amiga e encontrei outras e foi uma delícia falar de literatura. Depois teve o aniversário de uma outra, onde dei muitas risadas. Voltei para casa com uma dor muito desagradável na cabeça e na mandíbula. Ainda assim, alegre. Nada me faria recuar do que estava sentindo. Estava nas entranhas.
Esta semana, meu marido me mostrou um vídeo sobre as caretas que guitarristas e outros músicos fazem enquanto tocam. A explicação nerd dizia que o envolvimento do artista com a música, o instrumento, era tão intensa e visceral que o corpo se misturava com o objeto e os nervos reagiam sozinhos ao estímulo. Não tem como evitar. Vejo isso quando ele toca guitarra por lazer. Era como eu estava me sentindo com a alegria do pós cirúrgico, de vencer o ciclo da dor. Aquela senhora não tinha como quebrar o sentimento porque ele estava na minha circulação sanguínea.
Mas, não ignoro o registro da pergunta daquela senhora. Não me iludo através da minha felicidade. Não acredito no uso do otimismo de forma rasa. Gosto mais do otimismo trágico, um termo do psiquiatra judeu Viktor Frankl, sobrevivente do holocausto, que é apenas o que se precisa nessa vida: saber da parte boa, comemorá-la, e estar consciente das partes ruins. Ambas existem. Ambas!
E aí… as linhas do livro, da vida, da história se entrecruzaram como uma erupção. A razão do meu desgosto com o final de O segredo alegria foi ter sentido como se algo tivesse ficado engasgado. Como se não houvesse passo a frente, como se a gente ficasse preso na merda mesmo quando algo na vida dá certo. Meu autoquestionamento sobre não ter repertório para ser contra um final de Alice Walker estava correto. É claro que não era sobre ficar parada, era sobre resistir. Afinal, é possível uma mudança que faça sumir todo tipo de preconceito e dor? Talvez não. Tampouco isso faz de mim uma pessoa pessimista ou triste. A alegria não é eliminada pelos fragmentos da realidade/maldade.
Sigo caminhando - dançando, cantando, comemorando - mesmo depois de encontrar uma senhora com ideias racistas. Isso é o passo a frente. Isso também é quebrar o ciclo da dor. Isso também é mudança. Este é o meu segredo da alegria, continuar.
Ao invés de link de música para abrir o mês, vamos com essas belezinhas dançantes? Acrescento só o trechinho de Gonzaguinha entregando tudo: "Eu fico com a pureza das respostas das crianças/ É a vida, é bonita e é bonita /Viver e não tenha a vergonha de ser feliz", em O que é, o que é.
Uma semana alegre por aí com ou sem as ruindades da vida comum.
beijo,
Gabi
Sinto muito, Gabi, pelo encontro infeliz. Às vezes, só espelhar a pergunta da pessoa a ajuda a perceber como foi inapropriada (Ex. Eu moro aqui. E a senhora trabalha por aqui?) e é mais fácil que pensar em uma resposta rapidamente.
Gabi, somente agora vi a sua imagem. Só agora, então, entendi.