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Na era da tecnologia, o trabalho ainda não atualizou o sistema

gabialbuquerque.substack.com

Na era da tecnologia, o trabalho ainda não atualizou o sistema

Enquanto o mercado segue com paradigmas do século passado, as crises relacionadas a carreira se tornam cada vez mais corriqueiras

Gabi Albuquerque
Mar 13
17
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Na era da tecnologia, o trabalho ainda não atualizou o sistema

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Há três anos, quando a pandemia do coronavírus foi anunciada, começamos a confabular sobre como seria o trabalho a partir daquela data que obrigou profissionais não essenciais a trabalharem em casa. A maioria não sabia nem onde sentar quando essa fase começou. Menos ainda como conciliar este modelo com filhos, pais, casa, feira e, para completar, um vírus invisível aos olhos. Será que tudo mudaria para sempre? Finalmente, iríamos ter mais tempo para viver a vida? Nos perguntávamos. 

Aconteceu um movimento semelhante quando as novidades tecnológicas do século XX foram chegando ao mercado consumidor final. Perto dos anos 2000, acreditamos que a inovação nos faria trabalhar menos. Os robôs executariam as partes chatas e, no tempo extra gerado por eles, mergulharíamos no mais perfeito ócio.

Foto: Aideal Hwa

Em nenhum dos casos, as previsões se cumpriram. É 2023 e não alcançamos o éden que na nossa idealização se caracteriza como um lugar de descanso. Acredito que a grande falha no passado não tão distante, foi olhar para o trabalho apenas como uma mera ação mecânica. Eis que a mudança chegou e trabalhamos mais com a nossa mente do que com o braço. Nosso cérebro é espremido até a última gota e nossas colunas sofrem com as horas em cadeiras de escritório.

Onde viemos parar

Em um episódio do podcast O corre delas - focado em entrevistas sobre carreira sem romantização -, comandado pela jornalista Luanda Vieira, ouvi a diretora criativa Sarah Gomes, falar "no meu primeiro burnout, aconteceu isso". Primeiro fiquei um tanto assustada com o fato de não ter sido um acontecimento único, para em seguida lembrar de vários outros casos semelhantes, talvez até o meu. Admirei a honestidade dela por ainda assumir que não sabe como fazer diferente e que vê todos ao redor reclamando da mesma coisa, mas sem mudar o ritmo. Se vê refém de um modus operandi. Luanda se viu em situação semelhante.

Hoje é sábado, são 17h39 da tarde, e estou editando este texto. Fui atropelada por um monte de tarefas na semana e só consegui fazer isso agora. Estudei sobre trabalho e bem estar, sei que isso não é o ideal, e ainda assim cá estou. Pode ser uma fase. Talvez esse seja o jeito de trabalhar na minha geração. Estou, no entanto, consciente de que precisamos quebrar essa corrente de que carreira é a nossa existência no mundo.

Recentemente, convidei uma amiga para jantar porque notei que ela estava se encaminhando para mais um burnout. Se você tem alguém próximo vivendo uma relação tóxica, seja conjugal ou profissional, é de bom tom se dispor a ajudar e ouvi-lo. Conversamos e ela me relatou que estava ciente e procurando rotas alternativas. Falamos de como ser promovido e/ou reconhecido representa hoje um portal para horas extras. Rodamos na mesma questão de Sarah: "o que fazer diante disso?". 

Foto: Maxim Ilyahov

A cultura organizacional parece ter acompanhado as mudanças tecnológicas apenas nas ferramentas que invadem os espaços do profissional 24h os sete dias da semana. Nossa relação com a carreira e com o sucesso se tornou mais (in)tensa também à medida que fomos, curiosamente, tendo mais diversidade nos ofícios. Diante desses impasses, estamos como os cachorros correndo atrás do rabo, mas não está sendo divertido. 

Segundo dados de uma pesquisa da International Stress Management Association (Isma) o Brasil é, mais uma vez, o segundo país com mais casos de burnout no mundo, em 2022. 

O começo do desejo por realização 

Até o final da Idade Média vivíamos sem prestar atenção nessa história de amar o trabalho. Antes do capitalismo existir, já tínhamos uma sociedade baseada em hierarquias de classe; inclusive na época dos antigos romanos, precisar trabalhar por si só já colocava a pessoa numa situação humilhante. Na fase do domínio da Igreja Católica, entre os séculos V e XV, o trabalho ganhou ares de sacrifício divino; apenas mais uma forma de massacrar os servos e desencorajar revoltas.

Quadro O Bacanal, do artista Ticiano

O início da virada na nossa forma de enxergar ofícios foi no século XVI quando um artista de Veneza, o Ticiano, decidiu que seria pago por fazer o que gostava. Era bom de negociação, então convenceu as pessoas a pagá-lo por seus quadros e deu tão certo que aumentou a produção contratando assistentes.

Ticiano criou então um problema e uma solução ao mesmo tempo. Somos, naturalmente, mais felizes trabalhando com o que gostamos. Por outro lado, encontrar prazer pessoal e bancar nossa vida financeira na mesma tacada é um desafio (apesar da turma do Instagram fingir que não). A realização se tornou uma corrida de obstáculos que exige muito da nossa saúde mental.

E aí, cansamos

Séculos depois de Ticiano revolucionar carreiras, em 1869, a sensação de cansaço extremo somada a uma apatia generalizada foi diagnosticada pela primeira vez pelo médico americano George Beard. Naquele momento, ele a nomeou de neurastenia. Foi o diagnóstico recebido por Oscar Wilde, Franz Kafka e Virginia Woolf, por exemplo. Apenas em 1974, a síndrome recebeu o nome atual, burnout - queimar a si mesmo, em inglês -, do psicanalista alemão Herbert Freudenberger que era um workaholic e sofreu com a doença ele mesmo. 

A síndrome só foi reconhecida como doença ocupacional pela Organização Mundial de Saúde em janeiro de 2022. 

Imagem: Freepik

Há 20 anos, eu mesma vi minha mãe sofrer pela exaustão de trabalho. O diagnóstico foi estresse com síndrome do pânico e ela precisou pausar o trabalho, fazer exercício, terapia e mais outros passos que eu era muito jovem na época para entender. Assim como inúmeras mulheres deste país, ela sofreu com a sobrecarga de ser mãe, profissional, estudante - fazia faculdade -, usando transporte público, esposa, amiga, filha, irmã.

"Você não sabe o quanto eu caminhei para chegar até aqui/Percorri milhas e milhas antes de dormir/ Eu nem cochilei", A estrada (2014), Cidade Negra. Agradeço imensamente a ela e também meu pai que enfrentaram jornadas extenuantes para estarmos onde estamos hoje. Deu certo, mas não deveria ser assim, não cabe aqui romantização.  

O buraco é mais embaixo

Ainda observo uma ausência importante no debate sobre trabalho, burnout e nossa relação com sucesso na era da tecnologia que é o modo de funcionamento do sistema que segue esgotante, precário e facilitador para privilegiados. 

Como ir na contramão em um país com altas taxas de desemprego? Como bloquear o whatsapp após certo horário se não há segurança econômica? Como não sentir FOMO (medo de estar perdendo algo) quando as pessoas estão reforçando que sabem tudo o tempo todo? 

As sugestões para uma rotina melhor são: "Faça exercício", "Medite", "Respire", "Coloque limites". Parece até que quem manda é quem obedece e que o tempo é elástico. No Brasil, especialmente, trabalhar em um modelo mais saudável é um grande desafio - o que não quer dizer impossível - porque há uma economia frágil e uma cultura de exploração.

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A vida é breve, a história não

A maior marca da linha do tempo do trabalho é a exploração de seres humanos. No início através da hierarquia de classe e depois, já na Idade Média, com a escravização das pessoas negras confiscadas do continente africano. Monumentos que hoje admiramos, por exemplo, foram levantados dessa forma, das pirâmides do Egito aos grandes teatros italianos. Foram muitos séculos sendo operados na base da servidão.

Período do feudalismo. Imagem: Conhecimento Científico

A realidade globalizada com profissionais sendo pagos por seus trabalhos chegou por volta do século XX e a com pessoas escolhendo quais carreiras seguir e a internet dando espaço para minorias ganharem dinheiro só muito recentemente. Apesar das muitas melhorias que ainda precisamos fazer, há uma revolução acontecendo neste momento, tal qual a dos tempos de Ticiano.

Lembrando que para mudanças se concretizarem, é preciso viver as adaptações de todo o contexto social e econômico. O trabalho de fato ainda não fez a atualização do sistema - como um celular obsoleto - e estamos cansados de toda essa transição que, para nós, indivíduos, parece que é muito lenta.  Mas, lá na frente, quando esse período for observado de forma macro, haverá coerência e tudo terá corrido até rápido, já que estamos mais informados e conscientes, podendo cobrar de forma mais eficiente. 

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O que fazer se o agora está ruim? 

É interessante também saber, antes de tudo, que apesar do sonho do éden ser de total descanso, nós não somos mais felizes sem trabalhar. Se você já precisou se afastar por alguma razão do seu ofício ou se sentiu sem habilidade, com certeza foi impactado pela situação. O trabalho nos dá sociabilidade, identidade, senso de propósito; mesmo no ignorada tarefa de dona de casa. "Ao estudar o desemprego, você observa o quanto ter função é importante para as pessoas não só por razões financeiras, como também as psicológicas", explica o doutor Wilmar Schaufeli, pesquisador de Psicologia da Saúde Ocupacional e membro da Academia Européia do mesmo tema. Então, a solução não é o ócio.

Foto: Adana Hulett

Quem conta com privilégios - e se você os tem, os use -, sugiro escolher nadar contra a maré - é o que  busco pessoalmente. O sistema ainda não atualizou, mas já tomamos a pílula vermelha {referência a Matrix}1 e não tem mais volta. Podemos comprar a briga, nos posicionar e agir a favor dos oprimidos, pressionar lideranças, se estiver abaixo delas, e sermos líderes justos quando nestes cargos.

"Parece terrível de dizer aos outros (ou a nós mesmos) que não mire alto demais. Pode soar amargo e derrotista. Às vezes, é isso mesmo. Porém, talvez seja um conselho sábio e generoso, porque combate as agressões injustas que cometemos contra nós mesmos por não estarmos à altura de ideais imaginários.", aviso essencial para sobrevivência no livro Um trabalho para amar (2017), do grupo The School of life

Para quem está na batalha e não tem opção de pedir demissão, dentro das suas possibilidades procure desenvolver sua carreira, trace metas factíveis, estude e divirta-se. Não se deixe para depois. Beba água, coma vegetais, não faça nada que diminua suas horas de sono, respire, ouça meditação no youtube e apps gratuitos (funciona mesmo!), ame, abrace amigos, dance.

Frase e imagem do filme Wall E, da Disney. Montagem: Scoop Whoop

Somos maiores que as tarefas que nos são designadas, apesar da sua importância. Às vezes nos sentimos na lama, eu sei. Noutras vezes, nos sentimos felizes por ter um almoço com os pares de ofício. A história tem disso, já dizia Guimarães Rosa, "a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta." Então, vamos, todos nós, colocar as urgências nos devidos lugares e fazer da existência o que ela é: vivência.

Notas:

1: a pílula vermelha nada tem a ver com o misógino do "red pills" {Leia sobre esse caso aqui}. No filme Matrix (1999) é uma metáfora para quem despertou para a nova era, quem quis saber a verdade. Assistam, vale a reflexão.

2: Procure ajuda profissional ao menor sinal da síndrome de burnout. Os sintomas mais comuns são: cansaço excessivo, físico e mental, dores no corpo ou cabeça, alterações no apetite, problemas gastrointestinais, alteração nos batimentos cardíacos, insônia, isolamento, negatividade, tremor nos olhos, sentimento de fracasso, desesperança e/ou incompetência. Cuide-se! 

Leituras sugeridas e de apoio: 

  • Não me canso de indicar essa obra. O livro Fora de série - Outliers: Descubra por que algumas pessoas têm sucesso e outras não, do jornalista e pesquisador Malcolm Gladwell, é um chacoalhão no conceito da meritocracia. 

  • Se você está em busca de entender seus talentos e a procura de novos caminhos profissionais, indico o livro Um trabalho para amar, do grupo The School of Life. Tem exercícios e tudo. 

  • Uma referência quando se trata de trabalho, feminismo e o reconhecimento da independência financeira, a obra Um teto todo seu, da Virginia Woolf.  

  • A reportagem "Burnout: problema é reconhecido pela OMS e faz cada vez mais vítimas", da Veja Saúde sobre burnout e está completíssima. Recomendo a leitura. 

Uma semana com menos perrengue de trabalho para nós, 

Gabi 


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12 Comments
Mariana Moro
Writes isto não é um telegrama
Mar 13Liked by Gabi Albuquerque

que assunto importante, Gabi! tive um burnout ano passado e tenho lido muito sobre desde então. nas engrenagens do capitalismo, é muito difícil lembrar às vezes que somos maiores do que nossas tarefas, mas seguimos insistindo. 🙏🏻❤️

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1 reply by Gabi Albuquerque
Ale Garattoni
Writes Amo News
Mar 26Liked by Gabi Albuquerque

Lendo o texto, me teletransportei mentalmente para março de 2020 e lembrei de como, ingenuamente, (quase) todos estávamos certos de que muitas coisas jamais voltariam a ser como antes. Corta para março de 2023 e vemos posts no Linkedin anunciando "emprego híbrido, 4 vezes por semana presencial"(???). Não sairemos da pandemia nada diferentes em formatos nem muito menos mais blindados em saúde mental – mais provavelmemte o oposto. Se algo desta grandeza não mudou parâmetros datados, o que mudará, né?!

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1 reply by Gabi Albuquerque
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