O meu roteiro para ir a academia começa em casa quando tomo umas coisas que a nutricionista alega ser bom para minha saúde e meu envelhecimento. Meia hora depois, pego água e fones de ouvido sem fio. Chegando lá, escolho um tapete de alongamentos, coloco os fones e escolho um podcast para me acompanhar no treino. Estes dias, decidi ouvir a jornalista
- sim, fã - entrevistando Domitila Barros, recifense, miss Alemanha, ex-BBB e mais um monte de outras coisas.O ciclo termina quando estou de volta e começo a preparar o almoço ainda com o áudio ligado. Foi enquanto cortava o brócolis que ouvi Domitila falar "Eu acho que eu tive um burnout não porque eu trabalhava muito, mas porque eu tinha feito milhares de coisas e não era o sucifiente. (…) Você faz muito e não tem respiro". Meus olhos encheram de lágrimas. Finalmente alguém colocou em palavras o esgotamento que tive em 2021.
Quem não é herdeiro, nem tem a agenda com milhões de contatos importantes, nem estudou com gente filha de gente relevante no mercado, nem é homem branco, pode produzir muito e coisas incríveis e belas, ainda assim não terá sossego. A nossa entrega é para poder participar da dança, mas muitas vezes quando estamos na porta da festa, com ingresso na mão, a turma privilegiada já cansou daquele lugar e fecha a casa. Partem para outra. A nós, fica as alternativas: desistir, começar de novo para tentar entrar na nova porta ou procurar um lugar para colocar a sua música no som.
Assim como Domitila, nós mulheres, especialmente as pretas, escolhemos - muitas vezes por necessidade - arregaçar as mangas e criar os nossos próprios espaços. Foi assim que a gente se tornou maioria no mercado de influencers, no uso das redes sociais, possivelmente aqui no Substack (não tenho dados desta mídia, apenas percepção), na autopublicação, no microempreendedorismo e em tudo que envolve autonomia.
Não à toa o assunto desta semana no grupo de Whatsapp de amigas que escrevem nesta plataforma foi a crônica sobre a morte da crônica que saiu no portal UOL, assinada pelo escritor e cronista Julián Fuks. Não vou detalhar sobre o gênero literário porque minha colega
já fez isso e outras coisas mais muito bem na Estamos todos tentando, leiam aqui.Fuks alega que estamos vivendo o fim deste gênero, quase um "não se faz mais como antigamente" dito pela minha avó. Apesar de achar que vovó Salete nem diz mais isso. Vai um trecho para você entender:
Quanto mais horas passo lendo crônicas do passado, como fiz numa longa tarde de compromisso com a ineficácia, sob o sol cálido de um dia supostamente útil, quanto mais horas passo lendo crônicas do passado, eu dizia, mais percebo que não existe crônica no presente, que nosso mundo em estado crônico não a comporta.
Juntando esse saudosismo com a história de Domitila e a de tantas de nós, me sobrou a ideia de que querem desligar a música justo agora que a caneta não sai da nossa mão. A crônica não pode estar morrendo, Fuks. Tem muita gente pelo caminho para a gente dizer que a linha de chegada mudou. E quem está lá atrás? E quem está caminhando ao invés de correndo porque não tem mais fôlego? E quem ainda não narrou seu cotidiano? E quem teve a história roubada?
“Ah mas tinha Clarice”, podem alegar. É, tinha. Era livre? Não. Fazia isso confortável? Não. Clarice Lispector teve crônicas publicadas com pseudônimo porque não era bem visto o texto feminino sobre cotidiano. Estamos em 2023 e a nossa rotina - repito especialmente das pretas - segue sendo avaliada como bobagem nos livros e textos e jornais.
Há quem queira, inclusive, classificar as escritas dessas autoras (e autores, por que não?) com outros gêneros literários. Há quem faça questão de pequenezas como essas. Chamem como quiserem. Sendo crônica ou não, em texto ou em vídeo, a gente está narrando nossa vida. Para nós, a festa está rolando, não tem clima de enterro, o som está alto, a gente está na pista e a porta está sempre aberta.
Uma história pessoal sobre crônicas: quando anunciei que faria jornalismo, meu pai observando meu apreço por crônicas, tanto para ler quanto para escrever, me deu uma coletânea de crônicas do Antônio Maria, jornalista pernambucano tido como o primeiro multimídia brasileiro. Parece que meu pai estava prevendo o futuro da filha e não duvido disso dado seu talento para prever tendências de mercado. Já minha mãe sempre foi uma leitora fiel das crônicas nas revistas, jornais e livros. Martha Medeiros foi muito partilhada por nós duas. Exclusividade minha foram as que vinham na revista Capricho, acompanho a
e o Antonio Prata até hoje, independente de onde estão. Foi assim que me formei escritora, jornalista e leitora. Gostaria de deixar aqui meu profundo respeito e admiração por quem veio antes de mim e fez acontecer esse gênero tão brasileiro. Senti e sinto ainda a ausência das pessoas diversas narrando seus cotidianos nas crônicas de portais e jornais. Isso pode explicar o gênero estar decaindo nos veículos. Este público está com cada vez mais acesso a conteúdos variados - livros a reels - e quer estar na folha. Onde não é possível nos ver, não lemos mais e isso é ótimo.Nesta semana, na quinta (17), chegará newsletter exclusiva para assinantes premium. Será o "Querido trabalho,", meu diário contando sobre as aventuras desta mulher de 35 anos buscando novos rumos profissionais e escrevendo um livro. Quer receber este e outros envios? Assine por apenas R$10 mensais.
Julho foi como uma ventania rápida e forte, não deu tempo de enviar os favoritos do mês. Vou colocar umas sugestões por aqui, ainda é tempo!
Vou tratar do novíssimo livro O que é meu (2023), do José Henrique Bortoluci, na série "Querido trabalho," que citei acima. Foi um dos lidos em julho e é espetacular, fica a dica.
Assisti à segunda temporada da série da família Gil na Amazon Prime. O nome desta é "Viajando com os Gil" e é sobre a turnê familiar na Europa. O roteiro está um primor, deve ter sido dificílimo compilar todo o material e deixar linear e emocionante. Além de ser ótimo para ouvir as músicas e saber dos bastidores, encaro essa obra como um presente para a raça negra no Brasil; temos poucos exemplos diversos de prosperidade, afeto, sucesso, união na televisão. Ou seja, traz referência, identidade, autoestima e sonho. Ps: se quiser morrer de tanta fofura, foque nas crianças.
O depoimento do cantor Nando Reis sobre alcoolismo é de extrema sensibilidade e de uma vulnerabilidade rara depois que a palavra entrou na moda. “Sou alcoólatra, mas recuperei minha sobriedade” está na revista Piauí e o link é aberto.
Uma semana tão solar quanto os Gil.
Um beijo,
Gabi
Que texto. Eu não sei direito nem o que comentar mas eu queria demais ser enfática de que meu deus, que texto. E que vontade de chorar, porque eu também tô muito cansada
Excelente reflexão!!! Quero ir pra festa com você.