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Tenho uma vidinha bem comum de classe média. Lavo louça, coloco roupa na máquina, faço comida, vou no mercado. Assisto séries. Algumas noites têm vinho. Mando mensagem para amigas, algumas bobagens como uma roupa legal que vi por aí ou o novo creme que a dermatologista passou, outras seriedades como minhas vulnerabilidades. Captei que era melhor evitar ficar compartilhando links de matérias, podcasts e afins porque já entendi que o tempo do outro é escasso e as dicas cansam. Ainda envio quando faz sentido ou tem relevância. Trabalho. Leio. Faço exercício. Reclamo sobre mil coisas. Morro de rir com memes no Instagram. Passo raiva com algumas notícias. Nada mais brasileiro. Nada mais costumeiro, variando alguns hábitos de cada casa e corpo.
Apesar do cotidiano genérico, quase nunca me deparo com o tédio. Tem algo impulsionando minha existência; eu acho que todos nós temos um catalisador específico, na verdade, senão ninguém teria forças para sobreviver a tal vidinha comum. Acredito que no meu caso seja algo do qual já tentei me livrar, talvez por me guiar pelo mundo lá fora ou por carência ou por um levar ao outro. Sou uma mulher otimista, aprecio estar viva e tendo a enxergar um futuro bom. Mas, não é dessa parte que busquei me afastar. É do fato de junto a isso ser crítica, analítica, um tanto justiceira, teimosa e causadora de conversas difíceis.

Para ilustrar… Na outra Copa do Mundo feminina, em 2019, assistimos o jogo em que o Brasil foi eliminado na nossa casa junto com familiares. Era época de festa junina em Recife e a mesa estava repleta de comidas típicas e a conversa atrapalhava a narração, o que provavelmente deixou meu marido desesperado. Minha sogra fez três comentários sobre a seleção, em tom de crítica. Ignorei. No quarto, entanto, não aguentei; respondi com todo meu feminismo na ponta da língua. O "pós jogo" se tornou uma torta de climão. Escrevo isso rindo, confesso. No dia meus músculos tensionaram. Esta sou eu. A pessoa que fez o bolo de milho com mesa posta fofa é a mesma que causou porque não tolera a falta de equidade e bom senso com temas densos.
Quando precisei pensar na faculdade que faria, escolhi cursar jornalismo por gostar de escrever e, segundo meus pais, por falar sem parar. Hoje em dia, acho que amei o curso por poder ser a persona crítica e de olhos atentos atrelados a essas habilidades. Eu sempre fui um ser humano político. Eu sei que todos somos, querendo ou não, mas entendi o quanto a política está na minha existência enquanto tentava ser uma escritora com uma mão mais leve.
Não estou falando de política ideológica ou partidária e sim da filosófica. A que busca entender os elementos que norteiam a sociedade, como os conceitos de justiça, governo, liberdade, pluralismo, estado, economia, vida e bem estar social e pessoal.
Partilhei na terapia sobre a ideia de desejar ser menos como sou a fim de aliviar para o outro lado - o do leitor - e entre as nossas falas, entendi que não funcionaria. Não tem como disfarçar quem sou justo no trabalho no qual me entrego por pura paixão. Eu sou jornalista para além do diploma. Escrevo para dar cabo de tanta coisa dentro de mim e não são só itens pessoais, a minha vida só me joga novas perspectivas {talvez por isso, embora sofra, enxergo as mudanças como catalisadoras}.
Investigo sobre tudo e isso me engrandece, poderia, portanto, parar aí, mas não me contento. Preciso partilhar com os outros, no caso vocês, minhas percepções. E dado que pesquiso/questiono sobre Brasil, saúde mental, estilo de vida, por tabela desemboco em assuntos espinhosos. O bom texto, no meu ideal, os traz de forma gostosa de ler, independente do tema. Só que eu estava tentando ter a mão leve e falar das borboletas no jardim. Sabe como é? Não funcionou e nem quero mais.
Eu sou uma jornalista escritora e vice versa. É minha essência mesmo na ficção. Vou até dar um spoiler de um trecho que tenho aqui - um projeto para quando terminar o livro da esperança - para deixar nítido o que estou falando. É uma cena ficcional:
Ele não a tocou. Sequer fez gesto de que iria. Mas ela se sentiu desnuda, violada, partida ao meio. Como se os órgãos estivessem todos nervosos por dentro e por isso balançavam de lá para cá. Chegou em casa e não conseguia nem chorar. Só queria morrer e nascer de novo. Dessa vez homem.
Deve ser por esse meu mix de mesa posta com torta de climão que me identifico tanto com a personagem Charlotte da série Sex and the city (1998) e do spin-off And just like that (2021). Ela sonha com uma família e um par, faz muffins para as amigas, representa - muitas vezes de forma mequetrefe pelo roteirista da vez - a imagem de dona de casa que nos faz a associar ao conservadorismo. Aí de repente, ela tem uma filha que se descobre não binária (Rock) e lida bem com isso. A outra filha conta sobre sua primeira transa e lida bem com isso. Envelhece junto com o marido e quando sente angústia e vazio, volta a trabalhar com mais de 50 anos. Dá um baile de feminismo nos diálogos. Vira shots de tequila com as novas amigas de trabalho.
Outra personagem que leva isso brilhantemente é Lisa, que não acompanhamos do zero porque ela só entrou no momento spin-off e mesmo assim é minha favorita. Subentendemos que no passado a cineasta abandonou a carreira pela família e, no presente, recomeça depois dos anos fora do mercado. Não é um retorno fácil, como nunca é, e ela banca temas delicados e brigas e críticas como ninguém enquanto escolhe a roupa do dia. Aliás, finalmente alguém para me identificar; uma raça como a minha e com looks lindos, coisa que Charlotte não me causava nenhum apreço, confesso.
Na minha vidinha ordinária, sem a super casa de Charlotte e os looks de Lisa, parece que sou a mulher do bolo de milho, mas só parece. Este não é meu cardápio inteiro. Eu também sirvo torta de climão e perguntas difíceis na mesa, na newsletter, nos livros e no que mais preciso for sem parcimônia. Faço barulho, provoco motins, causo desconforto e aparentemente estou aqui para isso.
Se não for pedir muito, imagine minha saída do armário da treta, com esse visual de Lisa Todd. Se não puder, não se preocupe, essa pauta não é elegível para problematização.
Recomendações:
Recomendo a leitura da Prato Feito, do
, como um todo. Mas, este texto aqui é um descortinar dos nossos olhos viciados em realidades costuradas por padrões. Ando mesmo cada vez mais curiosa sobre como outras culturas enxergam o cotidiano, a vida, os sonhos. Aqui tive algumas respostas:- traz uma bela torta de climão nesta publicação. Está deliciosa de ler. “Quando falamos de leveza, sem falar de políticas públicas e classe social, trazemos para o campo individual a responsabilidade de tornar a vida um lugar mais agradável de se viver. A famosa meritocracia. “É só querer que consegue”.”
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Uma semana autêntica por aí.
Beijos,
Gabi
É hora de sair do armário
Nossa, sempre bom lembrar que dicas são cansativas. Eu nem clico em links não solicitados, a não ser que me expliquem do que se trata. Principalmente se for podcast. O mundo já tem dicas demais, socorro.
AMEI o conceito se sair do armário da treta!!
Eu tenho certa dificuldade de impor a minha presença e expor minhas ideias, críticas e bandeiras, dependendo da ocasião e do público.
Mas encontrei na escrita e uma forma de compartilhar pensamentos - por vezes íntimos, por outros verdadeiros torta de climão... me exponho tanto aqui nas minhas crônicas mas me sinto mais protegida do que faze-lo cara a cara. engraçado...