Descansar para descansar
Uma ansiosa de férias em uma viagem para relaxar que se tornou uma pressão por criatividade e terminou em risoto e Elton John.
Na última semana, viajei por uns dias com a ideia de ter uma semana de férias. Me preparei para este momento deixando textos prontos, organizando a vida e todos os prazos possíveis. Fui, com dois ou três livros - um deles atrasado porque é do clube que participo como mera leitora - e o corpo e o coração clamando por pausa. Não sendo uma hiperativa corporal, nesse aspecto domino bem o descanso. Basta me deixar em um sofá gostoso e se tiver vista, nunca mais sairei. Já minha mente é outra história; por ser escorregadia, quase não noto suas escapadas para atividades paralelas.
De repente me pego pensando que a pausa em si vai me fazer ter ótimas ideias para escrever. Funciona quase como uma autorização, já que terá benefício mercadologicamente. Não me culpo 100%. Essa lógica nos persegue até na literatura de ficção e não ficção. No já clássico O Ócio Criativo [1995], o autor italiano Domenico De Masi defende os momentos de deleite como forma de conseguir se manter "criativo". É um belo livro, longe de mim reclamar, e não traz o argumento de que o fim do ócio é criar, mas sim um convencimento para as pessoas que acreditam na sandice de que é possível viver em função do trabalho.
Foto pessoal, relevem minha falta de talento fotográfico.
Para o sociólogo, "o ócio criativo é a plenitude do indivíduo integral, na qual se pode conciliar 3 coisas: o trabalho, com o qual criamos a riqueza; o estudo, com o qual criamos o aprendizado e adquirimos o conhecimento; e o lazer, com o qual criamos a alegria e com o qual criamos o bem-estar". É preciso atentar que a definição foi criada na cultura européia, especialmente italiana, e até a linguagem vai mudar um pouco para nós, latinos. Por exemplo, riqueza, no texto, está se referindo a bens materiais no geral e não a vida de luxo ao qual associamos a palavra. Domenico tem razão na sua sugestão para conquistarmos o equilíbrio. Eu mesma já sugeri isso outras vezes.
No filme americano Não sei como ela consegue [dir. Douglas McGrath, 2011], Sarah Jessica Parker é uma mãe de duas crianças, trabalha no mercado financeiro, casada com um homem sem o mesmo status profissional dela. Uma mulher que nunca tem tempo para nada, redundante eu sei. Roteiro bem padrão, nenhuma novidade, mas vale assistir para refletir sobre agenda e cuidado de si. A personagem enlouquece para dar conta de tudo e nunca tem direito ao ócio. Na verdade, ela sequer pensa nessa opção. Todo espaço nas horas é para a família ou o trabalho. Quando ela deita para dormir, o que poderia ser sua pausa, se torna um momento de fazer listas mentais de tarefas.
A hora das listas noturnas (você também faz isso?). Perdoem a imagem granulada, não encontrei nenhuma decente no Google e fotografei a tela por achar um momento valioso.
Tal qual a cena do filme com a personagem na cama fazendo listas, criei expectativas sobre as minhas próprias ideias e pensei nelas várias vezes no avião e no primeiro e segundo dia do roteiro. Demorei a me concentrar em qualquer outra coisa, inclusive nas leituras e séries. Era como se minha mente estivesse me puxando para o depois da viagem e ao mesmo tempo me pedindo para esvaziar o pote. Finalmente, no que já devia ser o terceiro dia, peguei a escapada da mente no ato.
Nunca imaginei que pudesse ser como ela em algum momento, mas fui. Não tenho dificuldades em decidir pausar, sou a favor de férias, sabático e feriado, saio de cena sem dó. Me perguntei, durante a captura da escorregada mente hiperativa, se faço uma saída mesmo. Realmente me retiro? E mais importante, é possível se retirar? Curiosamente, em inglês, o verbo aposentar se traduz retire. Só vou relaxar quando me aposentar, sabe lá Deus quando?!
Talvez o fato de ser uma pessoa que precisa planejar a comida da viagem e a levar na mochila não contribua muito com o relaxamento. Na foto, empanadas da Carol, sem glúten, sendo meu almoço no avião, recomendo!
Clamei por paz. Não queria fazer uma análise da questão na viagem. Se tornaria o novo assunto neurótico. Meditei. Comi chocolate. Como de costume falei a mim mesma que não preciso enlouquecer em prol do sucesso - até porque que sucesso é esse? - e tudo bem se eu não enriquecer e não puder comprar uns vestidos a mais. Reli alguns escritos antigos para me reencontrar. Um deles é uma resposta para a pergunta: se a opinião de ninguém importasse, se dinheiro não importasse, qual é o meu desejo genuíno? Claro que na prática o dinheiro importa, até já falamos aqui, mas gosto de saber o que realmente quero independente dos boletos e desejos consumistas. Escrevo sobre meus sonhos de tempos em tempos. A casa que quero, a energia dentro dela, a luz que vai entrar pela janela. Os filhos que pretendo ter. Cuidados com meu corpo. Encontros com a família e amigos. O desejo por sempre conhecer gente nova e elas renovarem minha fé na humanidade. Como será quando estivermos velhinhos. Em qual cidade quero morar?
Me releio. Às vezes descubro que mudei em uma coisa ou outra. Na essência, quase tudo permanece. A ponto de, nestes mesmos escritos, eu descobrir que em outras férias também criei a expectativa do ócio para ter ideias novas e de preferências boas. Percebi um ciclo. Essa pressão vem no começo da pausa, depois se apazigua. Ou seja, talvez uma semana não seja suficiente, coisa para pensar na próxima.
Vinícola Ravanello, quando em Gramado recomendo fortemente.
Depois deste cuidado em me centrar, relaxei enfim. Fomos para uma cidade que já conheço e, por isso, me dei ao luxo de "apenas" apreciar a paisagem e tomar um café ou um chocolate quente ou um vinho. Consegui ler os livros e as newsletters - também atrasadas e essas seguem assim - e ver séries. Comemos muitíssimo bem mesmo com minhas restrições alimentares. No fim de semana - meu marido estava de home office - fizemos passeios e bebemos bons vinhos em uma vinícola familiar bem pertinho do hotel. Andamos uma média de 6 a 8km por dia. Observando as nuvens e a neblina, pensei que precisava mesmo de natureza e de uma pequena cidade conhecida. Viajar de volta ao território comum te faz adentrar no que poderíamos titular de "ócio ócio". haha
Foto: Natuza Tuz.
E se estamos falando de lugar conhecido, por que não a nossa casa? Há alguns anos, a situação acima aconteceu inverso aqui. Meu marido tirou férias e eu não. Naquele momento não viajamos, provavelmente por fluxo de caixa, e quando ele contou que iria tirar férias para curtir o sofá, os livros e os filmes da lista infinita e tirar cochilos quando bem entendesse, a reação dos colegas foi de repulsa. "Que sem graça! Férias sem viajar.", era a frase comum.
Não faz tanto tempo que os brasileiros não tinham dinheiro algum para viajar. O acesso tornou obrigatório ir, melhor ainda se for um destino que renda belos cliques para o Instagram. Fico feliz de termos mais condições de ver outras culturas e territórios, isso é valioso e enriquecedor. Mas, às vezes, basta um feriado em posição horizontal para tudo se refazer dentro da gente, com ou sem ideias novas depois. É bom ter a opção de ir e também é bom poder escolher ficar.
Foto do marido. A essa altura, já estava de boas na lagoa, literalmente. (trocadilho infame)
Quando fomos, nesse encaixe maluco entre voos e caminhos, trabalho dele e minha pausa, embarquei pensando nas ideias novas, como comentei. Lá, ao relaxar, me senti uma menina de férias da escola. Comi até um salgadinho de pacote, o que não faço há incontáveis anos; achei lá sem glúten, acredite. E assim pensei novamente na vida que eu quero. Encontrei a resposta no último almoço. Pouco antes do meu risoto chegar, um cantor se instalou, ligou o som e começou a cantar Elton John.
And can you feel the love tonight /How it's laid to rest? /It's enough to make kings and vagabonds /Believe the very best.
"Você pode sentir o amor esta noite /Como ele deitou para descansar? Ele é suficiente para fazer reis e vagantes /Acreditarem no melhor"
Conhecida como a música do filme O Rei Leão [dir. Rob Minkoff, Roger Allers, 1994]; para mim, é a música dos cds da minha mãe.
Minha ideia nova na verdade era o presente, eu o perderia facilmente se estivesse focada na criatividade para o trabalho. A vida que eu queria estava bem ali, naquele bistrô com uma música que amo e me lembra meus pais e meu marido embasbacado com a voz e o som do cantor. Estava naquele quarto de hotel com vista para neblina. Está também em qualquer outro território, a carrego comigo. O ócio é descansar para o amor ser suficiente?
Me retiro, então, aos meus aposentos, quantas vezes for preciso.
Aviso: hoje ao invés daquela lista de dicas, coloquei o que seria sugestão em negrito, dentro do texto. Eu, especialmente, sinto este formato como menos impositivo de "coisas a fazer" e, portanto, menos ansioso. Mas quero saber de vocês!
Balanço do mês
Falei demais de mim no texto, seria egóico demais me repetir. Então, vai áudio, mas vai diferente:
Agenda
Vai rolar um evento sobre newsletters brasileiras!!
Será um final de semana com mesas redondas e workshops, com destaque para a reflexão e a escrita. Pode já reservar na agenda os dias 05 e 06 de novembro.
O nome é: o texto e o tempo. Não fui eu que criei, mas estamos alinhados em títulos. Amei!
Confira a programação aqui (sim, tem meu nome e estou super animada e feliz com esse convite) e os ingressos podem ser adquiridos aqui.
Acompanhe as novidades aqui:
Desejo uma ótima semana cheia de esperança. Não deixe de ir votar no domingo (02/10) e exercer seu direito e dever como cidadã e cidadão.
Um beijo,
Gabi.
primeira vez lendo aqui. Que delícia de texto!
Li a sua news estando de férias e não poderia me identificar mais com o seu texto, Gabi! Também acabo entrando nessa de vou descansar sendo "produtiva" e querendo aproveitar para acelerar a fila de leitura, de ideias de textos que quero escrever e afins. Daí descanso o corpo, mas a cabeça não para jamais, kkkcry. Esse filme com a Sarah Jessica Parker sempre vem na minha cabeça quando começo a fazer lista de tarefas e já citei também num texto meu, é bom saber que mais gente se reconhece nele de certa forma. Adorei tudo!