A vontade é não se mexer para nada
Entre celular e tv, estamos mais que sedentários, somos os inativos digitais
Um programa clássico quando eu era criança era assistir a Sessão da Tarde, coisa que só esta idade permite. Os filmes eram majoritariamente americanos e o roteiro padrão apresentava um grupo de amigos, na mesma faixa etária dos espectadores, aprontando todas nos seus bairros. Através das relações dos personagens, nos envolvíamos com as ruas, as brincadeiras e as piadas daquele cotidiano. Nós, a turma dos anos 1980/1990, nos divertíamos acompanhando todo esse movimento enquanto lanchávamos biscoitos recheados sentadinhos no sofá da sala.
Os Batutinhas, um clássico dos anos 1990. Foto: Google Imagens
Graças a isso, quando ouço a criançada aqui do prédio fazendo um barulho digno de encobrir os dos aviões de Congonhas, me divido entre os olhos revirados por atrapalharem meu foco e um sorriso por eles estarem vivendo a vida fora das paredes dos apartamentos. Me alegro por serem subversivos ao hábito iniciado por minha geração de trocar o "corpo a corpo" das brincadeiras infantis pelo sedentarismo hipnotizado por uma tela. Os barulhos dos outros apartamentos em que morei se aproximavam mais do que revelam estes dados: cerca de 47% dos brasileiros adultos são sedentários e, o mais preocupante, 84% dos jovens.
Tímida, introspectiva e com certa tendência à preguiça, teria morado no sofá, mas fui impedida pelos meus pais; descia para o térreo do prédio com frequência, mas não corria nem me pendurava na árvore. No primeiro ano do ensino médio, eu e uma amiga ficamos de recuperação em Educação Física porque fugíamos das aulas com vergonha das nossas pernas nos shorts da farda. De minha parte, tinha um motivo a mais, até mais enfático. Eu odiava jogos de bola e as aulas nada criativas só tinha esse tipo de esporte. Quem me conheceu antes dos meus 18 anos, jamais apostaria que eu estaria fazendo exercício de 5 a 6 vezes por semana. O mundo dá voltas mesmo. (risos)
Quem era você nas aulas de educação física?
Foto: Spikeball
Hoje em dia, não é incomum amigos conversarem comigo sobre a dificuldade para se engajar em uma atividade física. Não em busca de conselhos, mas em um desabafo sobre a necessidade de começar e não conseguir ou não gostar. Essas trocas me levaram a refletir como foi que a fugitiva das aulas de educação física decidiu deixar o sofá por ao menos 1h por dia para se movimentar. O que me fez mudar? O que faz as outras pessoas mudarem?
A diversão na agenda do adulto
Entendi que, em parte, hoje faço meus exercícios porque me divirto, me poupo de dores articulares e ainda consigo me agradar com parabéns por evoluir. É um desafio bom, ao contrário dos jogos com bola. Achei meu tipo de atividade.
Já uma amiga dos tempos da faculdade me contou que se divertia muito na época da escola com os esportes. Ela curtia natação e o vôlei é amor até hoje. O problema foi que quando ela se tornou adulta, as duas modalidades eram mais difíceis na rotina nova e o vôlei ela só encontrava para quem queria ser profissional. Ela "só" queria se divertir e por não conseguir, passou anos sem se engajar em nenhuma atividade até o ano passado.
Foto: Raja Tilkian
Em plena pandemia, quando muitos abandonaram seus exercícios, essa amiga mudou a rotina e passou a frequentar a academia do prédio. Tudo começou com uma brincadeira. O desejo era provar que hábitos não se constroem em 30 dias de repetição de ação. Ela foi todos os dias e continuou indo depois. "Posso dizer que para mim não é hábito, quando precisei parar porque machuquei o tornozelo, não senti falta. Voltei porque adorei o resultado no corpo.", ela me contou quando perguntei como tudo mudou. Sinto informar, amiga, mas isso é um hábito.
Escovar os dentes é um hábito, por exemplo. Fazemos sem nem sentir. Foto: Superkitina
Temos a ideia de que quem está habituado a algo, o faz por prazer ou por sentir falta. Na verdade, hábito é apenas a repetição de uma ação por pura disciplina. Tem quem goste na maior parte dos dias, tem quem odeie e tem os que nem pensam nisso. Mas, é claro que tudo que nos dá prazer é mais fácil de ser realizado. Em 2021, ainda sem vacina, me vi faltando a aula de yoga online com frequência por estar esgotada de atividades em casa. Na mesma época fui ao ortopedista que me pediu para fazer musculação devido a uma questão do meu quadril. Troquei e me vi feliz indo para academia porque veria gente, de máscara e álcool em punho.
Qual era a brincadeira da infância que te deixava mais feliz? Pode estar aí uma pista do seu prazer.
A minha amiga não sabe o porquê de ter criado o desafio, mas sabe como estava se sentindo nessa fase do medo. "Tive um processo de emagrecimento na pandemia sem dieta; fiquei abalada, perdi o apetite. Já não estava satisfeita com o peso anterior, o exercício me ajudaria a manter". O prazer que ajuda o hábito a se concretizar não precisa estar apenas na atividade em si, como se pode notar nessa história. É possível vir de uma mente mais serena pela distração da rotina de trabalho ou da sua autoestima.
Não quero mais uma tarefa
Percebi que o movimento ganhou status de tarefa quando fomos adicionando, sutilmente, obstáculos para exercê-lo de forma natural. A ideia de facilitar a vida com a tecnologia era até bem intencionada, o foco era o progresso e até mesmo mais saúde. Este novo estilo de vida, no entanto, nos levou à exaustão mental. Antes mesmo do Coronavírus surgir e nos adoecer, já estávamos com fadiga de obrigações e como era tratada como tal - ainda é para muitos -, a atividade física foi sumariamente rejeitada.
Busquei imagens de adultos se divertindo e 95% eram sem movimento e quando tem, majoritariamente são de homens. Isso diz muito! Foto: Austin Neill
Talvez por isso a palavra diversão tenha surgido em meio a minhas conversas e pesquisas. É como se quem tivesse conseguido ressignificar o movimento, tivesse ultrapassado as barreiras que nos fazem nunca dar o primeiro passo, como o tempo, o trabalho e o cansaço.
Ao se tornar lazer não exige mais esforço para entrar na agenda?
Estamos em uma cultura que nós, adultos, temos alguns pré-conceitos sobre qual diversão nos pertence. A gente aprendeu a encher nosso cérebro de dopamina com o fugaz e intenso, como um jogo de celular, stories de Instagram, séries, álcool, comida e sexo. Tudo isso é gostoso, claro. Mas, se, apenas se, a gente preencher nosso lazer exclusivamente com o raso, não resta uma sensação cada vez maior de vazio?
Foto: Marvin Meyer
Quem quebrou a barreira do movimento como tarefa, também precisou quebrar a barreira de que todos nós temos direito a um espaço na agenda para algo que nos preencha sem ser trabalho. Meu marido, nos tempos de escola, também curtia esportes e foi atleta de handebol. Quando adulto, assim como minha amiga, a rotina o levou a ter altos e baixos com os exercícios, não por falta de vontade. Consciente da importância do movimento, conseguiu se ajustar e apesar da carreira corporativa com uma rotina caprichada, há 5 anos é corredor amador. Não satisfeito, ano passado aderiu ao triatlo.
Ele constata: "Me divirto, é empolgante os avanços, gosto de organizar os treinos e o resultado ajuda a querer mais". Acredito. Após passar por uma covid longa, está precisando retomar as atividades em ritmo lento e sem corrida por enquanto. O vejo entristecido pela ausência do seu lazer favorito.
"A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte", como bem traduziu os Titãs na música Comida.
A necessidade de se mexer
Mas, diversão por diversão, poderíamos conquistar sentados numa espreguiçadeira em frente ao mar lendo um livro - eu amaria - ou conversando com os amigos em uma mesa de bar acompanhados de copos de cerveja. Então, a atividade física não pode estar só nesse campo, dependendo do nosso livre arbítrio. E não está.
Apesar da nossa soberba já comentada, não fomos nós que criamos nós mesmos, por isso, mesmo com muitos esforços para vencer a biologia, não conseguimos e a vida não é - nem será - só mamão com açúcar. Temos vantagens que nenhum outro animal tem, como o senso de planejamento e diversidade emocional e intelectual. Só que tem algumas condições no contrato: dormir, comer comida (parece redundante, mas…) e se mexer.
Pelas últimas pesquisas, parece que soltamos todas, né?
Preciso reconhecer aqui que temos um lado de inércia e até precisamos dele. Foi o que nos levou à descoberta da agricultura, à formação das cidades e comunidades, à necessidade da linguagem comum. Mudamos muito nessa fase, foi quando tivemos um salto na evolução. Mesmo assim, há menos tempo do que pensamos, ainda era preciso buscar água longe, cuidar da plantação, colocar a mão na massa para tudo e qualquer coisa que desejássemos.
O que o caminhão está fazendo era nossa tarefa e as plantações eram menores. Hoje, apenas direcionamos as máquinas. Foto: Scott Goodwill
No século XX, começa a grande mudança. O trabalho intelectual foi ganhando mais espaço enquanto o braçal ganhou mais maquinário e, recentemente, com a descoberta da internet, mudamos profundamente o nosso estilo de vida. Deixamos de fazer esforço físico intencional, nos tornando inativos fisicamente, e passamos a ter o chamado comportamento sedentário. Ou seja, mesmo quem faz atividade física, como eu ou você, não se mexe mais como deveria.
Com o delivery, você ainda vai a pé à padaria?
Uma neurose boa
Lembro que há mais de 15 anos, uma tia, muito querida e com idade relativamente próxima a minha, foi diagnosticada com hipertensão. Depois da consulta ela foi na nossa casa e comentou sobre os cuidados necessários, como diminuir sal e os remédios. Em meio aos receituários, a médica sugeriu a prática da yoga para diminuir o estresse. Ela seguiu o conselho, amou e viu resultados. Nesse tempo, ela teve dois filhos, se tornou professora de criança e agora faz pilates. Definitivamente se mexe.
Provavelmente foi na época da yoga da minha tia que eu comecei a pensar sobre o que era fazer exercício de fato. Recorri como sempre aos livros e revistas. Não sei o que aconteceu e não lembro o que li, mas decidi que seria uma pessoa que cuidaria da minha saúde naquela época. Provavelmente o que me levou a isso foi meu medo de morrer e de ficar doente, posso culpar minhas neuroses que são maiores do que meu cansaço e preguiça.
Foto: Madi Doell
O medo tem sua função, no entanto não recomendo a minha neurose como forma de fazer exercício físico. E, claro, não sou feita só dela. A yoga da minha tia foi só a deixa para que eu me aproximasse do que já tinha interesse: qualidade de vida.
Para algumas pessoas, o caminho pode ser mais suave. Uma amiga de infância, ex sedentária, me contou que se matriculou no pilates por insistência da terapeuta. "Precisava escolher algo, não gosto de caminhar, aí fui para o pilates. Hoje, vou porque gosto", ela revelou. A terapia pode ser um caminho empático e gentil de realizarmos a nossa própria importância, não só para fazer exercício.
Mais que sobreviver
Minha dúvida até aqui era saber porque mesmo sabendo dos benefícios da atividade física, deixamos o sedentarismo ganhar. Por que arriscamos? Talvez para se afastar do medo da morte através do negacionismo e do falso otimismo. Isso mesmo, aquele mesmo que alguns usam para negar pandemia e vacinas, se entranha em nós por outras razões. Nessas horas, agimos, mesmo adultos, tal qual adolescentes e repetimos "isso não vai acontecer comigo".
Foto: Raul Najera
Numa infeliz coincidência, enquanto produzia este texto, uma dessas situações nunca imaginadas aconteceu com um amigo. O marido da minha prima foi internado com embolia pulmonar. Apenas 30 anos, sedentário e com uma rotina comum nesta idade no Brasil. Quando fomos visitá-lo, comentei:
- Estou escrevendo sobre exercício físico, aí vi um dado sobre sedentarismo e fiquei preocupada com os jovens que deveriam estar mais ativos.
- Pode me colocar lá como exemplo, ele respondeu.
Rimos com pesar. Agora está tudo bem e ele seguirá para um longo tratamento agradecendo por ter detectado cedo.
A possibilidade que me ganha na explicação dessa situação é de que simplesmente estamos tentando nos livrar do que nos faz humanos. Cortamos a diversão. O movimento. A profundidade. O ócio. Tem quem corte até o sono. Nos tornamos tarefeiros do viver e deste modo, curiosamente, fizemos as humanidades se tornarem tarefas.
Se a vontade é de não se mexer para nada, talvez estejamos apenas sobrevivendo. Se voltarmos a ser mais humanos e menos máquinas, será que a gente não voltaria a viver? Para mim, sim. Sabe qual é um dos sinônimos de "ativo"? Vivo.
Gabi, querida! Adorei a reflexão, que está muito em alta por aqui. No meu caso, sempre achei uma perda de tempo tirar 1 hora do meu dia para me movimentar, quando poderia usar esse tempo para trabalhar. Aí o burnout veio, né? hahaha *rindo de nervoso. Do jeito que a sociedade moderna se desenvolveu e como está caminhando, você tocou num ponto importante: estamos deixando as humanidades de lado.
Amando sua News. Obrigada por esse texto, e esse trechinho que ficou destacado por aqui:
“Se a vontade é de não se mexer para nada, talvez estejamos apenas sobrevivendo. Se voltarmos a ser mais humanos e menos máquinas, será que a gente não voltaria a viver? Para mim, sim. Sabe qual é um dos sinônimos de "ativo"? Vivo.”
Também fui uma adolescente que corria da educação física. Depois me encontrei no balé. No entanto virei uma adulta sedentária. Decidi retornar através do balé, mas não rolou pela rotina.
Até que, decidi entrar na natação aos 30 anos e ainda: não sabia nadar. Rsrs
Aprendi a nadar, e hoje faz parte da minha rotina. Vejo mudança física, me sinto muito melhor e disposta para cuidar da minha saúde física e mental. Tô a dois meses longe, com um aperto no coração, por motivo de projetos e uma viagem muito esperada. Mas tô tentando cobrir com corridas.