A sorte de fazer o que se quer
O livro Cartas a uma negra me fez questionar: o mundo está mesmo melhor?
Tenho sorte porque posso fazer o que eu quiser. É o que me obriga a concluir o livro Cartas a uma negra (1978), da antilhana Françoise Ega. Não é um esforço capturar a lição da autora, está bem descrito na página, entregue para o leitor não ter escapatória. Em toda a narrativa, Ega não deixa nenhum espaço para cinismos ou falsos moralismos ao contar sobre a experiência como faxineira em Marselha, no litoral sul francês.
"(...) As outras, Yolande, Renée, a sra. Roland, contarão daqui a alguns anos aos filhos, aos parentes: “Vocês têm sorte! Vocês têm todas as condições para fazer o que bem quiserem!"
Por se tratar da revelação de uma rotina que expõe a burguesia local, é de se esperar que a história se apresente em formato de diário e mantenha o sussurro do segredo nas entrelinhas. Françoise, entretanto, nos surpreende com um trunfo. Nas páginas, ela "conversa" com ninguém menos que a autora brasileira Carolina Maria de Jesus. O registro então toma forma documental pois denuncia comportamentos do primeiro mundo e dá voz a quem não recebe espaço para falar.
Foi, inclusive, lendo a revista literária Paris Match, nos anos 1960, com um relato sobre a descoberta dos escritos de Carolina e a publicação de Quarto de despejo (1960), que Françoise descobriu a possibilidade de ser escritora. Como se ali houvesse uma autorização invisível para pessoas como ela - negra, mulher, faxineira, imigrante - colocarem suas palavras no papel. Naquele momento, o que causou espanto em Ega foi a pulsão da brasileira para escrever mesmo em um ambiente de puro desalento - morando em favelas, passando fome e sozinha com os filhos. Isso a inspira e a faz adotar Carolina como farol, âncora e vocativo em seu diário.
"Apesar do cansaço, aproveito o sol, perto de uma janela, depois de ter cozinhado para a família, e penso em você."
Depois de trabalhos extenuantes e de cuidar das crias e da casa, a antilhana senta na cadeira e escreve. Enfrenta tudo que uma mãe costuma enfrentar quando decide persistir no sonho que é apenas seu. Os seus lápis são surrupiados para serem usados em desenhos, o marido ora faz piada, ora apoia, as páginas escritas às vezes se perdem e algumas são encontradas embaixo dos travesseiros dos filhos o que soa como sinal de "é uma boa história, então". A personagem persiste, pois frente a sua heroína, está vivendo bem - tem casa, família, férias e comida - e, por isso, não deve desistir.
É uma história belíssima do momento de semear o que hoje as mulheres negras podem colher como frutos. A estrada percorrida por qualquer pessoa do gênero feminino, independente do seu talento, é definitivamente mais árdua do que a dos homens; a das negras se percorre sem uma mão para segurar. Melhor dizendo, tem mãos, calços e apoios de outras pessoas de suas comunidades, famílias ou de um outro excluído que se compadeça. Não tem de quem pode de forma efetiva as levar a linha de chegada. Me questiono, portanto, que sorte é essa que tenho.
No berço do meu lar, nunca ouvi que não poderia fazer o que quisesse e como vi algumas famílias de amigos brancos não se portarem da mesma forma, ainda na fase do vestibular, entendi que eu era uma menina sortuda. Era acolhida com minhas habilidades. Fui ensinada o valor do trabalho, mas mais do que isso: o meu valor. Sendo assim e com pais podendo pagar boletos, pude fazer meus gostos profissionais. Minha dúvida é se isso basta e para onde me leva.
Mesmo nos dias mais terríveis no trabalho, incluindo uma fase de licença por burnout, minha mãe não poderia sonhar em sair daquilo que já era uma regalia - emprego público - perto do que seus pais tiveram. Talvez por isso, ela e meu pai ao me ouvirem reclamar de algum abuso de poder de chefes repetiam: você não precisa disso, se demita! Provavelmente eles desejaram poder dizer tal coisa aos filhos. Exercer meu talento era prioridade para eles desde que ninguém me fizesse subalterna. Foi muito útil, mas também foi inocente. Fora das suas asas, descobri um mundo pouco aberto a receber pessoas como eu e nem falo só de raça aqui.
É o que tem para hoje
Ao contrário do que aconselha Virginia Woolf em Um teto todo seu (1929), nem Ega nem Carolina esperaram ter condições ideais para abraçar a escrita. Não havia tempo. Ou se sentava e escrevia onde desse ou nunca mais. E se elas não fizessem isso, como a nova geração iria conseguir? É perceptível na leitura um pensamento frequente de Ega: cuidar e instruir as mais novas para que não precisem passar por nada do que ela vive.
Acredito que uma das maiores angústias da nossa geração é não conseguir entender se estamos melhorando enquanto sociedade. Nos perguntamos se tudo de ruim que surge nas telas é efeito do acesso a informação que leva a mais denúncias. Existem dados concretos que nos mostram alguns avanços mundiais sobre pobreza e fome - infelizmente retrocederam na pandemia - e há um evidente avanço tecnológico e na medicina. Em termos de expectativa de vida, estamos ok. Mas, não estamos nos sentindo bem, isso é um fato. Então, o esforço está valendo a pena ou não?
Ega queria que no futuro as mulheres vivessem melhor do que ela, uma datilógrafa - habilidade muito requisitada na época - que não conseguia emprego porque nenhuma empresa queria contratar uma negra. A escritora não dependia das faxinas para bens básicos. Seu marido conseguia alimentar a família e até prover alguns “luxos” como passeios. Ela queria apenas ter suas habilidades reconhecidas. Desejava ter seu dinheiro. Pagar por suas vaidades e revistas. O trabalho doméstico a ajudou a não depender do marido.
“Mas, Carolina, é tão bom não ficar dizendo: “Quando meu marido trouxer o pagamento, comprarei um par de meias novo!”.
Nem eu nem as amigas do meu círculo social precisamos fazer faxina para pagar a conta no salão de beleza ou comprar um livro. Arrumar casas alheias não é, de jeito algum, um demérito. Estamos melhores que Ega por não ter a necessidade de nos curvar diante de quem acredita ter o direito de pisar em que os serve. No entanto, ainda pagamos preços altos para fazer o que queremos. As pessoas que estão na estrada feminina seguem, em maioria, puxando pela mão suas iguais. Em vagas de trabalho, seguimos sendo as mais rejeitadas. Já fui confundida com empregada doméstica em diversos locais, incluindo prédios que morei, porque ainda acreditam que este é o lugar de quem não é branco.
O que tem para hoje é o mesmo que tinha para Ega e Carolina. Sentar e fazer o que precisa ser feito por sua paixão. Por sua individualidade. A narrativa da antilhana é de dar nó na garganta em muitos trechos e ler as tragédias da nossa história amarga a boca. Ainda assim, em nenhum momento, senti a energia cair. Pelo contrário. Andava em uma fase de ânimo baixo e ela me levantou. Seu truque é sua essência e suas origens. As façanhas da resiliência e da ternura da latino americana trazem um frescor tal qual os ventos que ela descreve a cada mudança de estação em Marselha e na Martinica, sua ilha antilhana.
"Cara Carolina, é melhor encarar a vida assim, como um raio de sol: nem decepção, nem mágoa, nada ofusca o jeito de ser maravilhoso da Solange, e as crianças estavam encantadas por terem uma amiga dessas."
Não sou a favor do discurso do “quem sou eu para reclamar” me comparando com quem sofre ou sofreu mais. Também não é louvável ser uma reclamona mimada diante de ganhos factíveis. Estamos com mais sorte e colhendo frutos porque as que viveram antes não vieram a passeio. Não está tudo resolvido, nem para nós nem para ninguém, e estamos a algumas léguas dos privilégios que realmente merecemos1. Por isso, apesar do cansaço e das inúmeras batalhas a serem vencidas, é preciso repetir a toada e seguir em frente.
Para andar a estrada, nos abasteçamos do que nos sustenta pois há indícios de que sim, o esforço é válido, afinal aqui estamos, vivos e sendo o que queremos ser, mesmo que isso não pague a compra de muitas revistas ou livros ou blusinhas.
Uma semana de sorte pra nós.
Um beijo,
Gabi.
1: É um coletivo: mulheres de todas as raças, minorias que sofrem com a exclusão, homens negros, pessoas em situação de vulnerabilidade. Ainda temos muitos para trazer para a vida merecida.
Para o autocuidado necessário e vida real, recomendo esta leitura:
Que texto, Gabi! Que texto! <3
Fiquei curiosa demais pra ler esse livro, Gabi. A minha lista de livros pra ler só aumenta...haja vida pra tanto livro! Hahah 🤷🏼♀️🤓