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A sorte de fazer o que se quer

gabialbuquerque.substack.com

A sorte de fazer o que se quer

O livro Cartas a uma negra me fez questionar: o mundo está mesmo melhor?

Gabi Albuquerque
28 de ago. de 2023
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Tenho sorte porque posso fazer o que eu quiser. É o que me obriga a concluir o livro Cartas a uma negra (1978), da antilhana Françoise Ega. Não é um esforço capturar a lição da autora, está bem descrito na página, entregue para o leitor não ter escapatória. Em toda a narrativa, Ega não deixa nenhum espaço para cinismos ou falsos moralismos ao contar sobre a experiência como faxineira em Marselha, no litoral sul francês.

"(...) As outras, Yolande, Renée, a sra. Roland, contarão daqui a alguns anos aos filhos, aos parentes: “Vocês têm sorte! Vocês têm todas as condições para fazer o que bem quiserem!"

Por se tratar da revelação de uma rotina que expõe a burguesia local, é de se esperar que a história se apresente em formato de diário e mantenha o sussurro do segredo nas entrelinhas. Françoise, entretanto, nos surpreende com um trunfo. Nas páginas, ela "conversa" com ninguém menos que a autora brasileira Carolina Maria de Jesus. O registro então toma forma documental pois denuncia comportamentos do primeiro mundo e dá voz a quem não recebe espaço para falar.

Foi, inclusive, lendo a revista literária Paris Match, nos anos 1960, com um relato sobre a descoberta dos escritos de Carolina e a publicação de Quarto de despejo (1960), que Françoise descobriu a possibilidade de ser escritora. Como se ali houvesse uma autorização invisível para pessoas como ela - negra, mulher, faxineira, imigrante - colocarem suas palavras no papel. Naquele momento, o que causou espanto em Ega foi a pulsão da brasileira para escrever mesmo em um ambiente de puro desalento - morando em favelas, passando fome e sozinha com os filhos. Isso a inspira e a faz adotar Carolina como farol, âncora e vocativo em seu diário.

"Apesar do cansaço, aproveito o sol, perto de uma janela, depois de ter cozinhado para a família, e penso em você." 

Depois de trabalhos extenuantes e de cuidar das crias e da casa, a antilhana senta na cadeira e escreve. Enfrenta tudo que uma mãe costuma enfrentar quando decide persistir no sonho que é apenas seu. Os seus lápis são surrupiados para serem usados em desenhos, o marido ora faz piada, ora apoia, as páginas escritas às vezes se perdem e algumas são encontradas embaixo dos travesseiros dos filhos o que soa como sinal de "é uma boa história, então". A personagem persiste, pois frente a sua heroína, está vivendo bem - tem casa, família, férias e comida - e, por isso, não deve desistir.

Se você não sabe: as Antilhas são um vasto arquipélago da América Central, distribuído entre o Mar do Caribe (Grandes Antilhas e Pequenas Antilhas), o Golfo do México(costa noroeste de Cuba) e o Oceano Atlântico. Muitos territórios antilhanos foram colônia francesa. Importante: ainda é do domínio da França 2 806 km² (882 000 hab.), do Reino Unido 1 023 km² (141 000 hab.) e dos Países Baixos, 742 km² (308 000 hab.). Imagem: Wikipedia.

É uma história belíssima do momento de semear o que hoje as mulheres negras podem colher como frutos. A estrada percorrida por qualquer pessoa do gênero feminino, independente do seu talento, é definitivamente mais árdua do que a dos homens; a das negras se percorre sem uma mão para segurar. Melhor dizendo, tem mãos, calços e apoios de outras pessoas de suas comunidades, famílias ou de um outro excluído que se compadeça. Não tem de quem pode de forma efetiva as levar a linha de chegada. Me questiono, portanto, que sorte é essa que tenho.

Carolina Maria de Jesus antes e depois do lançamento do "Quarto de despejo"

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