A gente não se acaba quando vira mãe ou pai. Nem quando casa. Nem quando muda de cidade. Nem quando saímos de um trabalho que parecia ser para sempre. Nem quando descobrimos um talento. Esse último pode parecer estranho de se pensar, é que haverão outras aptidões, não encerramos em apenas uma ou duas.
Temos nossas afinidades. Nossos interesses base. Coisas que vão guiar nossa jornada. Mas sempre tem um novo saber para ser descoberto lá dentro do peito. Desenhar a lápis, costurar roupa de boneca, preparar uma massa do zero, andar de skate. Somos um saco sem fundo de habilidades.
Inclusive, se você pausou o trabalho por questões de parentalidade ou doença ou reflexão, quando você quiser voltar, saiba que poderá descobrir um novo caminho. E se está trabalhando querendo algo diferente, é possível encontrar alternativas. De repente, surge um novo jogo antes mesmo do anterior acabar. Esteja de olhos bem abertos porque nem sempre o juiz apita avisando o início da partida, a gente que lute para notar a deixa.
Também sugiro abrir o peito, ainda que em condições difíceis e com perrengues, para os mil formatos que podemos viver, e se deixar surpreender com o que tem no seu baú e com a sua força interna. Ter alguém por perto para ajudar e acreditar em você é um primor, ajuda a sustentar o sonho. Mas, às vezes, você encontra essas pessoas, parceiras de vida, percorrendo a nova jornada. É como achar a nossa turma quando somos adolescentes, nem sempre é fácil e rápido e às vezes é melhor ficar nos poucos e bons.
Eu sei que na hora do sufoco parece que nunca mais haverá saída. Imagino uma mulher cuidando de uma criança de um ou dois anos, às vezes duas. Ela vive em torno de fraldas, sonecas e mamas. O peito nem é mais dela naquele momento. A sensação é de que não há mais um indivíduo para além da mãe. É só impressão. Provavelmente vai surgir uma nova versão dessa persona existente e persistente. E ela será divertida, cheia de repertório e com eventuais cheiros de leite. Te juro, tenho amigas assim. Quem sabe, com a nova configuração, não se descobre uma exímia usuária de Excel? Descoberta feita diante de planilhas de roupinhas e custos de neném!
Pode ser que o burnout tenha batido na sua porta e você esteja sentindo como se não fosse capaz de sair dessa situação. Existem mil possibilidades de fases complicadas e dolorosas, a vida não nos poupa. Às vezes a dor é a própria dúvida sobre quem você é ou qual seu propósito.
“Essa é a parte estranha da depressão e da ansiedade. Elas agem como um intenso medo da felicidade, muito embora você conscientemente queira essa felicidade mais que qualquer outra coisa.”, Matt Haig no Razões para continuar vivo
Saiba que nessas horas você também não acaba. Numa esquina qualquer, aparece um outro começo. Tem quem escreva livros lindos aos 80 anos. Tem quem se apaixone na casa dos 60. Não quero dizer com isso para você esperar coisas grandiosas acontecerem para viver o agora. Vai indo, vai sendo.
Não tinha intenção de ser imperativa, as palavras, no entanto, me dominam. Então, as obedeço. Faça novos amigos mesmo sendo um adulto morando na cidade em que você nasceu. Fique de cabeça para baixo numa cambalhota ou aula de yoga. Brinque com crianças mesmo sem querer filhos. Coma brigadeiro num dia preguiçoso para assistir um filme velho. Nos cursos mais aleatórios você pode descobrir um novo trabalho ou projeto ou diversão.
Pode ser que seus pensamentos ou um algoz esteja te dizendo o contrário. Quando isso acontece, tendemos a fechar o peito. Encolher a alma. Já estive assim no final de 2018. Sentada no sofá, em posição fetal, sentindo como se nada mais fosse funcionar. Adoro dezembro, sempre me empolga, e nem o clima do mês me levantava. Um dia, meu marido entrou em casa depois do trabalho e disse: ultimamente quando abro a porta te vejo com o peito fechado, braços na frente, recolhidos. Eu não tinha notado até ali. Esta fala me deu o estalo; não para me curar do dia para a noite, mas para reconhecer onde estava e onde gostaria de estar. Para me reencontrar e expandir.
Às vezes volto para essa sensação. Nunca mais foi deste tamanho; até já contei aqui da ajuda que me foi necessária depois da pandemia. A cena do sofá me lembra que sou capaz de voltar. Que não preciso do sucesso como dizem no Instagram. Que não caibo dentro de apenas uma caixinha. Que não é o fim. É um recomeço. Sempre é, sempre será.
De repente, a gente sacode o saco sem fundo que somos, encontramos um brinquedo novo. O olho brilha outra vez. E vamos em frente, meio cambaleantes, até sei lá quando. Acredito eu que segue assim mesmo quando nosso corpo finda, vida após vida após vida. Sem fim. Vale a pena experimentar cada etapa desse ciclo. A gente não se acaba. Sigamos.
“Este texto saiu depois de uma semana difícil devido a uma perda inesperada. Deixei as palavras correrem e acredito que pode ser útil para quem está lendo, mesmo que não esteja necessariamente vivendo um transtorno mental. Às vezes estamos em um momento difícil e a leitura nos dá respiro. Dedico a uma pessoa querida que seguiu sua história e a todos os amigos e familiares seguindo as suas jornadas, aqui, um dia após o outro.”
Obs: se você está em uma fase de escuridão e solidão, procure ajuda através do telefone: 188. Converse com quem confia. Sugiro fortemente o livro Razões para continuar vivo, do escritor Matt Haig que sofreu um colapso mental aos 24 anos. A obra é belíssima, sensível e com zero lição de moral.
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Uma semana plena de amor para nós.
Um beijo,
Gabi.
tão sensível esse texto, Gabi, muito lindo. tem todo o contorno daquela amizade que chega devagar com carinho e fala: presta atenção, tem tanta vida. adorei!
Que texto amiga. Arrepiei aqui, me vi aqui m duas palavras, tanto os momentos difíceis, como os de redenção. Sigamos!!