No sofá da sala começamos a ouvir a playlist que meu marido preparou para o parto. Tem disso nos tempos modernos, escolhemos uma lista e a criança nasce enquanto toca uma das canções e nós achamos que foi uma escolha intencional dela. Na prática não sei se terei paciência para música ou barulhos durante as contrações. Pode ser que eu decida seguir em silêncio, por tabela minha filha virá na mesma sinfonia: o nada.
De qualquer forma achei bom criar a lista. O pai da criança é bom de música, tanto para tocar quanto para ouvir, por isso a tarefa se tornou dele. Apesar de saber o quanto quase treze anos de convívio fazem uma pessoa conhecer a outra, me surpreendo com as nuances que ele captura de mim. Na primeira música já abri um sorriso. Passamos um tempo assim, entre um play e outro, até que começou Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil. Eu amo a letra, os acordes… não sei porque sempre a ouço em tempos de Páscoa. Ou seja, sei bem aquele texto. Em tese não teria mais nada a me dizer além do já dito.
Aí Gil solta “Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que aceitar a dor/ Tenho que comer o pão/ Que o diabo amassou /Tenho que virar um cão”. E algo novo surge em mim. Desde o início da gravidez repito por aí o quanto acho absurdo a biologia - ou Deus para quem preferir - nos fazer passar por todo esse processo de formar uma nova vida, já devidamente grandioso, e ainda ter mil sintomas horríveis e padecer. Não me sentia capaz de entender o sentido disso e sigo sem uma resposta concreta, mas peguei uma pista na música.
E se para alcançar Deus e a magnitude de algumas vivências da vida, a gente precisasse atravessar o pão que o diabo amassou? E se o que ou quem nos fez não foi só um ser de bondade extrema? E se houve um acordo ou manipulação? Talvez a gente prefira acreditar, mesmo os mais céticos em relação a religiões, que temos a base construída por influências indulgentes e no caminho nos deixamos ser corrompidos pelas ruins. E se nossa raiz tiver de um tudo?
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