Tempo para abraçar a sua singularidade
Nessa vida cheia de tarefas e excessos, a escrita é o espaço para aquietar e se ouvir
Não sei ao certo a faixa etária que me acompanha aqui, vez por outra trago referências um tanto antigas e me pergunto se vocês vão assimilar a mensagem. Acrescento explicações quase sempre para garantir a compreensão de todas as idades. Digo isso porque hoje já começo com uma dessas. A música Creep da banda Radiohead. Já ouviu falar? O grupo é dos anos 80, é inglês e toca rock alternativo, recomendo ouvir, e a canção é do começo dos anos 90, quando eu ainda era uma menina. Apesar de só ter ouvido anos depois, a letra falaria comigo mesmo que eu a tivesse descoberto na infância.
But I'm a creep/ I'm a weirdo/ What the hell am I doing here?/ I don't belong here
Mas eu sou um esquisito/ Eu sou um estranho/ Que diabos estou fazendo aqui?/ Eu não pertenço a este lugar (tradução livre)
Fui uma criança contemplativa, tímida, insegura, leitora e escritora. Minhas inquietações não eram sobre pular em galhos de árvores ou fazer graça sem sentido, eram sobre entender algumas notícias e histórias, conversar por horas, investigar os porquês das coisas. Sendo assim, nenhum colega me aguentava muito. As primas eram obrigadas. haha Eu era uma creep no meio em que estava e a minha saída foi a caneta. Escrevia em qualquer papel até os 12 anos quando ganhei um diário e desde então tenho meus cadernos de mim.
Uma amiga capturou essa imagem em 2019, meramente ilustrativa. Não escrevo diários em público.
Talvez por isso tenha amado tanto ler o livro Caderno Proibido (1951), da italiana Alba de Céspedes, ninguém menos que a escritora que inspirou a best seller da tetralogia A amiga genial, Elena Ferrante. Céspedes foi um grande nome da literatura no século XX por falar sobre personagens femininas sem floreios numa época em que isso ainda era polêmico. Por exemplo, no Caderno conta a história de Valéria Cossati, uma dona de casa, mãe, esposa e secretária de escritório que vive em Roma no pós guerra e o faz não através de um romance, mas das anotações no diário da personagem. Então, ali está a intimidade bruta de uma mulher cujo único lugar que tem voz é no tal caderno.
Quando a gente entra no mundo do escrever, não falo do ofício da escritora, mas da escrita que fala de nós, da conversa com a gente mesmo, nossa vivência das experiências e do tempo muda. No cotidiano, as horas voam, as tarefas acumulam, os problemas pipocam na tela do celular. Com a caneta na mão ou o teclado em punho, os minutos passam em um ritmo próprio. Certa vez, estava trocando e-mails com Aline Bei, uma escritora incrível e vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, concorrendo novamente este ano, sobre cartas e diários e ela me disse com toda sua típica poesia:
"Piglia dizia, enquanto lia os diários de Kafka, que a "narração é o lugar de viver duas vezes o que aconteceu, viver com mais calma". É narrar para si para entender a complexidade do que nos aconteceu. Porque na vida parece que a coisa escorre, né?", essa última frase é um deleite.
Com essa troca, Aline me descreveu. Na escrita das minhas narrativas, que acontece todos os dias, atualmente em cadernos ou bloco de notas do celular, comecei a compreender a minha esquisitice e colocá-la em um lugar menos árduo. Já enviei inúmeros e-mails longos ao meu terapeuta - com a devida autorização - contando do que tinha conseguido capturar sobre mim. Coisas que verbalmente jamais teria conseguido elucubrar.
Foto: Natuza Tuz
Foi também através da escrita, essas em cartas de papel, que tive conversas dificílimas com meus pais. Meu casamento é permeado por diálogos em que eu escrevo e meu marido fala. Repito por aí que sou melhor escrevendo do que falando. Escrever, para mim, é um tempo para me encontrar comigo mesma inteira.
O tempo para você
Colocar no papel quem somos vai além de mim e dessa nossa geração. Aqui nem preciso explicar as referências porque apesar dos diários e cartas serem um caminho escolhido por mulheres há muitos séculos, permanece entre nós o que demonstra a sua força. Temos de reconhecer o quão poderoso é você escolher, por livre espontânea vontade, colocar em palavras suas vivências, seu sentir e seu tempo na sua agenda cheia de tarefas para atender os outros. Não é só sobre escrever, é sobre tempo. A escritora Alba de Céspedes traz isso muito bem nesse trecho:
"O fato de somente a esta hora conseguir ficar sozinha para escrever me faz compreender que agora, pela primeira vez em vinte e três anos de casamento, dedico um pouco de tempo a mim mesma.", a personagem Valeria, no livro Caderno Proibido.
Tradução livre: coisas que quero dizer, mas nunca disse. Foto: Marc Schaefer
Esses fragmentos que vamos registrando não servem apenas para o futuro, como naquelas cartas cápsulas que foram tendência antes dos anos 2000 ou nos diários de autores consagrados que são publicados após suas mortes, mas também para o presente, para nós. Releio anotações de tempos atrás e me surpreendo com as mudanças, o amadurecimento e com o fato de que tudo passa mesmo. Nesses processos de me descobrir e redescobrir, encontrei outros sentidos para creep que sigo sendo.
Whatever makes you happy/ Whatever you want/ You're so fucking special/ I wish I was special
Seja lá o que te faz feliz/ Seja lá o que você deseje/ Você é especial pra caralho/ Eu gostaria de ser especial
Esse trecho é evocado na música para outra pessoa, mas pensando comigo decidi que ser esquisita também é ser especial. Jamais no objetivo de ser superior, mas no do ser diferente também ter valor. Aprecio o tempo, as estações, o vai e vem do mar. Observo a vida, o cotidiano, as conexões e assim também vejo as durezas desse Brasil cheio de brasis, tudo isso com algum distanciamento, mantendo meu olhar tímido. Analiso a mim mesma, remexo e reviro vivências, dores, alegrias, entro no meu mundo e custo a sair. Primeiro respiro bem fundo. Não me rendo, resisto ao que me ditam, deixo a concha apenas com a condição de não abrir mão da esquisitice. Abraço a excentricidade.
Ser quieta
Há alguns anos, descobri uma palestra no TED Talks sobre o poder dos quietos. Susan Cain, pesquisadora e escritora americana, relata em menos de 20 minutos sobre como sua vida e carreira foram complicadas até ela entender que era uma introvertida tentando viver em um mundo feito para extrovertidos. "Algumas das nossas maiores ideias, obras de arte e invenções - desde os girassóis de Van Gogh até os computadores pessoais - vieram de pessoas quietas e cerebrais", ela argumenta. Na cultura da extroversão, o valor não está nos seus feitos, mas no quão bonito você fala.
Não à toa, milhares de livros publicados são escritos por introvertidos. Na ausência da fala, uma ação que exige impulsividade, fluidez e bravura, a palavra escrita, uma ação, como já disse, paciente, vagarosa e profunda, ganha fôlego.
Gosto muito dessa versão da canção para o filme francês Viveram felizes para sempre (2004), com a icônica Charlotte Gainsbourg
"a timidez foi meu adversário mais tenaz. No entanto, foi minha timidez, com certeza, que me impeliu a escrever, a manter o diário", a fala de Alba, trazida por Mariella Muscariello, professora e pesquisadora italiana, no posfácio de Caderno proibido, que complementa "Para Alba, a escrita é o instrumento através do qual se realiza sua independência e se constrói sua identidade de mulher livre."
Encontrar o outro
Percebo agora que nunca escrevi sobre escrever. Não sei ao certo como definir essa atividade que é tão entranhada no meu ser. Sei o que encontro nela e, talvez seja por isso o texto de hoje. Nesse período histórico de dureza, como eu mesma tenho retratado nas últimas news, é nas letras, escritas exclusivamente para mim, que alcanço colo. Solto a mão sem me julgar e sem medo de cancelamentos. Crio esse tempo meu, às vezes 10 minutos, e me entrego ao meu sentir. Em seguida, um alívio tremendo toma conta do meu corpo. No outro dia, se eu reler tudo se ilumina e se esperar um tanto mais, a luz é ainda mais forte.
Tem quem desenhe, pode ser um caminho para você. Deixe sua mão livre. Foto: Noémi Macavei-Katócz
Já na escrita pública, mais cuidadosa e revisada, faço a minha revolução, não no sentido de motim e pancadaria, mas de transformação. Para explicar, libero meu próprio diário:
"Reconheço em mim, hoje naturalmente, o que me faz trabalhar e pensar o trabalho como faço. Se hoje comunico sobre tempo, equilíbrio, bem estar e equidade de gênero e raça é justamente porque vivo tudo isso. Não sou perfeita e nem tenho a pretensão. Tem revoluções que ainda nem sei que são minhas, mas as que sei carrego comigo. Em todos os lugares. E se para que se realize precisa começar na gente, significa ter humildade, autocompaixão, se conhecer de forma honesta e não idealizada e ser fiel a si mesmo."
Eis que através desse trabalho, encontrei outros diferentes que são iguais a mim. Usam o tempo e a escrita e a leitura para se entenderem e entenderem seus arredores. A palestra da Susan Cain não era à toa, somos um bom grupo, ainda que em menor tamanho do que outros. Há até quem estranhe introvertidos fazendo palestras e eventos, mas nós não temos nada contra socialização, somos capazes disso. No entanto, cansa. Por isso, quando saio da concha respiro fundo, me preparo. Mas, vou. Principalmente para o que vale a pena.
Recebi um e-mail, há um ou dois meses, com um convite do qual mal acreditei quando li. "Gabi, você topa participar de uma mesa de um evento sobre newsletter?". Nem perguntei o sobre, vindo de quem veio já disse sim. Depois vi o título: Como tornar ideias simples em textos geniais?. Já é um elogio em si. E o do evento? O texto e o tempo. Já até falei dele aqui para vocês. Esse grupo de pessoas quietas estão, a seu modo, promovendo uma revolução única. Conseguimos, sim, eu estou dentro, fazer através da escrita nossa um movimento que mistura o efeito da escrita pessoal - alívio e redenção - e o da profissional - transformação.
Espero que você, leitoras/res, encontrem nesse texto a inspiração necessária para abrir um bloco de notas ou um caderno e colocar para fora tudo que te aflige, te alegra, o que você agradece, o que você rejeita, o que você viu na televisão, seu almoço de segunda-feira. Se Piglia tem razão e se narrar é viver duas vezes, então é também ganhar tempo extra.
Nos vemos no evento? Mais informações aqui:
O texto e o tempo
5 e 6 de novembro de 2022 (sábado e domingo), das 10h às 18h
On-line, via Zoom.
As mesas e oficinas não serão gravadas.
Inscrições aqui (via Sympla)
R$ 48 (20 vagas sociais gratuitas). Este ingresso te dá direito a participar de toda a programação do evento, dá para escolher suas preferências - talvez todas! - e se jogar. Serão cinco oficinas e cinco mesas redondas, além da abertura e do encerramento, com mais de 30 pessoas convidadas. Confira a programação aqui.
Balanço do mês
Devido ao grande volume de informação e reflexão exigidas este mês, não fiz um balanço em áudio. Acredito que os textos foram suficientes. Pensarei em um formato legal para conteúdo de voz e em breve abro pesquisa aqui para ouvir vocês.
Boa semana e até semana que vem (espero que com boas novas!),
Gabi
Que texto bacana, Gabi! Escrever um texto, na era dos vídeos curtos, já é singular demais.
Sinto que essa retomada da experiência escrita e do compartilhar textos para além dos caracteres limitados das redes sociais tem feito essa atividade, muitas vezes solitária, voltar-se ao coletivo novamente. Comprei meu ingresso para o evento o texto e o tempo e estou super animada!