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Tão inteligente e caiu em golpe!

gabialbuquerque.substack.com

Tão inteligente e caiu em golpe!

A inteligência que não se mede por teste de QI é mais valiosa do que se imagina

Gabi Albuquerque
Feb 13
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Tão inteligente e caiu em golpe!

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Qualquer um que conversa com meu pai, sai do encontro pensando "como é inteligente esse cara". Minha mãe é notável por ser sempre incansável no aprender e ser tão informada e minha irmã é uma esponja com uma capacidade de capturar conhecimento no ar. Eu… Bem, sempre gostei de ler, aprender, escrever, filosofar, mas não era "boa" nas exatas. Para completar, além das leituras, gostava e gosto de coisas consideradas supérfluas, como moda. Fui lida por muitos como não culta e isso era uma tragédia, afinal, eu vinha do lar dos intelectuais com ótimos boletins.

Apenas mais madura e com muita terapia, comecei a me reconhecer inteligente - sim, sem modéstia. Dia desses, olhei para as minhas prateleiras de livros e veio à memória meus títulos, conquistas, projetos, mudanças, superações. Pensei: nossa, eu sou mesmo filha dos meus pais. 

Foto: Natuza Tuz

O engraçado é que o reconhecimento não foi só pela bagagem erudita, foi também porque peguei um pouco de cada um, incluindo minha irmã, professores, amigos, personagens dos livros e filmes, e construí minhas diversas camadas. Aprendi a criar laços de afeto, a sobreviver a mudanças, a celebrar, a chorar e a errar. Esses feitos também são inteligência. A nossa cultura, no entanto, insiste em só enxergar genialidade nas turmas dos vestibulares mais disputados, e esperar que essas pessoas sejam incapazes de cair em ciladas dada a sua sabedoria científica.

Essas certezas sobre as formações intelectuais seguem mesmo com pessoas graduadas em universidades acreditando em fake news sobre vacinas e em golpes medíocres. Será que o que estamos vendo como inteligência é de fato inteligente?

O golpe está aí, cai quem quer 

Neste mesmo mês, no ano passado, estávamos às voltas discutindo sobre o documentário O golpista do Tinder lançado pelo streaming Netflix. O roteiro conta a história real de um homem que se passa por milionário no app de relacionamentos Tinder e cria todo um cenário para conseguir dar um golpe financeiro nas mulheres que ele conquista. As vítimas denunciam e a investigação se torna o filme.

Vale avisar que o golpista segue vivendo livremente. Foto: CNN

Nos comentários dos posts do Instagram sobre isso aparecem perguntas como: mas, é tão óbvio a trapaça, como elas caem nesse golpe? 

Aconteceu o mesmo no caso da Anna Sorokin, golpista russa que se passou por uma herdeira alemã nos Estados Unidos e enganou pessoas da elite americana, incluindo os com graduação nas universidades da Ivy League, título de excelência acadêmica. Mais uma vez se perguntam: como esses inteligentes acreditaram em Anna e a concederam crédito em bancos, viagens de graça e socialização?

Será que são inteligentes mesmo?! 

O caso de Anna, que foi presa em 2019 e solta por bom comportamento em 2021, sob fiança e com tornozeleira, também se tornou mídia no Netflix com o documentário Inventando Anna. Foto: People

"O golpe é o mesmo só muda a vítima" é o que diz a letra do funk, do DJ Gunga, lançado em 2020, e que inspirou o meme brasileiro sobre ser trapaceado. Na música, o enredo é uma traição no relacionamento amoroso, mas, na prática, poderia ser sobre inúmeras outras pautas no nosso país e de outros lugares onde o absurdo está subindo no palco.

Os não leitores

Logo após o segundo turno das eleições presidenciais aqui no Brasil, em outubro de 2022, vieram à tona denúncias de racismo, xenofobia, apologia ao nazismo e misoginia em grupos escolares de São Paulo, Curitiba, Brasília e Porto Alegre. Os estudantes proferiram frases citadas por Adolf Hitler, líder nazista alemão, e outras como "Espero que você morra, negro". A notícia surpreendeu por esses adolescentes estudarem em escolas particulares de altíssima mensalidade e aulas de disciplinas diversas, incluindo tecnologia. 

Segundo dados do estudo "Retratos da leitura no Brasil", feito pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural entre 2015 e 2019, apenas 52% dos brasileiros leem e dentre esses apenas 38% o fazem por prazer. O mais curioso é a queda de 12% no número de leitores nas classes A e B ao longo dos quatro anos. O recorte de gênero mostra que as mulheres aumentaram o índice em 7%, sendo 59% do público leitor do país. O livro mais citado como favorito foi a Bíblia.

Foto: Jonny Swales

Observo esses dados e penso no que aconteceu ao longo dos quatro anos analisados e depois. Significa que as camadas sociais mais altas estão deixando de ler, além de não consumirem diversidade, portanto também não provocam debates com repertório nem fora nem dentro das suas bolhas. Isso talvez explique o que aconteceu nas escolas privadas em 2022, afinal são estes adultos que estão educando as crianças e adolescentes.

Foto: Pawel Czerwinski

"É necessário olhar além do indivíduo. E também conhecer a cultura da qual ele faz parte, saber quem são seus amigos, sua família e a cidade de origem de seus familiares.", analisa o escritor e jornalista britânico Malcolm Gladwell no seu livro Outliers: Descubra por que algumas pessoas têm sucesso e outras não (2008), reforçando que inteligência e repertório não se constroem apenas nas salas de aula.

A ilusão do QI

Não faz muito tempo que os pais, das classes A e B, conversavam comentando o resultado do teste de QI (quociente de inteligência) dos seus filhos. Se fosse acima da média, ganhava um destaque extra. Fora o incentivo a disputas, essa valorização não era exatamente culpa dos genitores. 

A avaliação foi criada em 1905 pelos pedagogos franceses Alfred Binet e Theodore Simon, mas foi apenas em 1912 que o psicólogo alemão William Stern a deu o nome utilizado até hoje: QI. O teste ganhou fama no final dos anos 1960 com a chamada "revolução cognitiva", quando a ciência psicológica afirmava que a inteligência implica um processamento duro e frio acerca dos fatos1. Foi a era do hiper-racional, quando todos repetiam que emoções deveriam ser reprimidas e que pessoas sensíveis seriam fracassadas.

Foto: Pawel Czerwinski

Anos depois, descobertas sobre o funcionamento do cérebro mostram que emoção conta e muito. "A inteligência acadêmica pouco tem a ver com a vida emocional. As pessoas mais brilhantes podem se afogar nos recifes de paixões e dos impulsos desenfreados; pessoas com alto nível de QI podem ser pilotos incompetentes de sua vida particular", explica o psicólogo e pesquisador Daniel Goleman no seu livro Inteligência Emocional (edição de 2005). O bom desempenho no QI na verdade só indica mais sucesso na sala de aula. Nas experiências de vida e até na sensação de satisfação, quem têm vantagem são os competentes emocionalmente. 

A árvore sentimental

Em uma cena da série A vida mentirosa dos adultos (2023, Netflix), inspirada no livro homônimo da escritora italiana Elena Ferrante, acontece uma conversa entre a personagem Giovanna, uma adolescente, e uma personagem adulta - não vou revelar o nome para evitar o spoiler - desta maneira:  

- Não é culpa de ninguém. Erramos, às vezes. Nós nos machucamos sem querer. (Giovanna) 

- Você é sábia. 

- Não. Eu leio muitos romances. (Giovanna)

Esta "sabedoria" é o desejo do adulto que precisa ter habilidades emocionais e sociais para lidar com a vida real. É uma compreensão de mundo que exige vivência e cultura. O psicólogo Robert Stein2 classifica essa competência como inteligência prática. "...a inteligência prática inclui elementos como “saber o que dizer e para quem, saber quando dizê-lo e saber como dizê-lo para obter o máximo de efeito”. (...) é saber como fazer algo, sem necessariamente saber por que se sabe aquilo nem ser capaz de explicar isso. É de natureza pragmática", explica. 

Foto: Joice Kelly

"Eu sou o que o tempo, a circunstância e a história fizeram de mim, certamente; mas sou também muito mais que isso. Eu e todos nós.", escritor James Baldwin no livro Notas de um filho nativo

Inteligência emocional, no entanto, não é apenas a linguagem literal. É sobre a expressão, as formas como buscamos sentir e responder às demandas da vida. Não é mensurável por testes. A mãe da personagem Giovanna é professora e edita livros, o pai um acadêmico. É natural para ela ler os romances e responder através do vocabulário emocional aprendido nos livros.

Mas, esse repertório emocional garante inteligência? Se sim, seria uma questão de sorte pois precisaríamos nascer em uma família rica culturalmente para ter a aptidão. E nem sempre é assim, sabemos. Não se trata de vir ao mundo com estrela na testa, como diz o ditado. “O saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria com a vida e os humildes", define uma das maiores escritoras brasileiras, Cora Carolina.

A boa escola

Acredito na educação, a clássica mesmo, que nos faz saber de geografia, português, história e matemática. Nos faz conhecer o impensável, descobrir talentos, sair do conforto. Essa inteligência sem a emocional não garante felicidade nem sucesso, mas ter domínio sobre seus sentimentos sem a chance de saber o tanto de conhecimento que há nesse mundo não é justo e também não assegura vantagem alguma. Depois da escola, podemos escolher outros caminhos e talvez até jogar as aulas de física no canto escuro da memória. Tudo bem. No entanto, esta seleção só é possível porque tivemos acesso a possibilidades. É importantíssimo que todas as pessoas, independente de classes e gêneros, tenham garantido seu direito à educação de qualidade. 

Exemplo da falta de conhecimento escolar sobre inteligência emocional: reprimir o choro.

O que não se pode é esperarmos alcançar esse feito nas escolas privadas e públicas, para só então termos o ensino emocional e social nas grades curriculares e a valorização das aulas de filosofia e sociologia. São base para formação do pensamento crítico e intelectual. É o que evita apologias ao nazismo, por exemplo. 

Educação sentimental

Ainda que eu reconheça minha inteligência hoje, segue no meu corpo, como um impulso primário, o desejo de validar meu conhecimento. Em você também tem uma marca exigindo da sua sanidade, sendo tema de terapia. Todos nós temos nossos corações com buraquinhos3.

É através dessas ausências e carências que os golpistas se entranham na nossa capacidade de análise e que as seitas e ideias suspeitas ganham espaço. Portanto, quanto mais desenvolvemos nossas habilidades emocionais, mais protegidos estamos. Quando repito a frase da escritora Joan Didion que informação é poder, também é sobre isso.

O maior desafio da educação sentimental é que para termos seu diploma, precisaremos saber de nós mesmos. Não é suficiente se informar sobre o mundo, quem pintou qual quadro, quem descobriu a lâmpada. Daí a importância da educação sentimental, especialmente infantil. Se nossas crianças conseguirem aprender a lidar com suas emoções na infância, através da escola e na família, certamente serão adultos melhores que nós.

Para também aprendermos - sim, é possível e plausível - é necessário entrar em contato com nossos corações esburacados e buscar os remendos; o método pode ser através de estudos, aulas, terapias, meditação ou autocompaixão.

Pode soar estranho para a cultura erudita e racional que estamos, mas o mais inteligente a fazer, muitas vezes, é sentar e chorar.

Notas

1 Citação do livro Inteligência Emocional, Daniel Goleman (edição 2005)

2 Citação do livro Outliers: Descubra por que algumas pessoas têm sucesso e outras não, Malcolm Gladwell (2008)

3 Referência a música nada erudita da primeira versão da novela Chiquititas. A geração 30+ saberá. 


Leitura complementar: 

Publicação da

.flows magazine
sobre seitas e enganações

.flows magazine
.autoengano
puxadíssimo esse início de 2023. o ano começou com, para dizer o mínimo, uma energia caótica terrível. quando olho para a última news do ano passado, em que falei sobre um caos do bem, talvez eu não tenha expressado meus desejos com as melhores palavras para o universo (modesta ela, das que acham que, por não ter soprado canela no dia prime…
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3 months ago · 57 likes · 23 comments · Luciana Andrade

Uma semana inteligente, de verdade, para nós.

Um beijo,

Gabi


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12 Comments
Mariana Moro
Writes isto não é um telegrama
Feb 15Liked by Gabi Albuquerque

Gabi, gosto tanto da sua news que já estou inscrita com meu segundo email <3 hahaha

Seu texto caiu como uma luva, tenho trabalhado muito na análise essa questão da inteligência dita intelectual/lógica/útil/tradicional (ou qualquer outro nome inventado para ela) x inteligência emocional e como ao longo da infância e adolescência fui muito incentivada pela primeira, mas acabei por demorar a desenvolver a segunda.

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1 reply by Gabi Albuquerque
Giuliana Giordano
Writes devaneios & outras loucuras
Feb 14Liked by Gabi Albuquerque

achei demais o teu texto, me identifiquei super!

sempre fui a pessoa criativa, que lia e escrevia, fazia teatro, criava histórias... e zero a pessoa da matemática, absolutamente avessa às exatas... me enxergar inteligente foi todo um processo!

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