Sem o racional, resta o instinto
por aqui a vida intelectual anda capenga, mas a animal...
Há uma forma de existência que vivo a perseguir. Não sei se por influência dos meus pais e sendo isso, se vem do campo do trauma ou do legado. Ainda há a chance de estar tentando cumprir um papel outrora tão negado à minha ancestralidade e gênero. Pois bem, acho belíssimo quem sabe ser intelectual e é esse meu desejo. Não do tipo esnobe, erudito, dos que enxergam riqueza em apenas um tipo de produção acadêmica. A pessoa a qual persigo - não literalmente que fique claro - e a qual gostaria de me tornar é a que sabe saber. Lê dos cânones aos populares, ri das piadas de Vani e se emociona com atuação de Eunice Paiva - como superar o frisson Fernanda Torres? -, dá umas voltas na Zara e na livraria com o mesmo olhar e faz bolo para depois debater os temas mais profundos enquanto come a fatia generosa.
Para atingir tal objetivo, nem sempre preciso de esforço. É muito fácil para mim estar nessa dicotomia das coisas e da vida. Para o meu entorno é estranho. Vejo nos seus olhos. Por outro lado, é difícil manter uma disciplina em alguns estudos e pesquisas. No durante padeço do tédio. Depois me sinto plena e em um degrau a mais. Enfim, como todo mundo, tenho meus desafios e minhas facilidades. Sendo assim, meu plano de carreira e vida - não sei separar essa tal persona de nenhuma vertente - caminhava por vezes em passos lentos, mas sempre em frente.
Eis que fiquei grávida em agosto de 2024 e desde então o plano não se concretiza. Me sinto perambulando sem seguir as setas do destino final. No início, os enjoos me tiraram de mim em todos os aspectos. Naturalmente, perdi peso, minha glicemia baixou a um ponto que certamente meu cérebro achou por bem gastar menos energia e obviamente meu corpo estava em outro foco. Para solucionar o mal estar e garantir o peso adequado para produzir um bebê, a sugestão médica foi o uso do remédio continuo, no meu caso o dramin b6.
Em duas semanas só não construí um altar para o fármaco porque sentia minha língua amarga como efeito colateral e porque queria ser uma grávida comum, ou seja, sem enjoos depois das 16 semanas. De qualquer forma, as pequenas cápsulas cor de rosa me salvaram e me devolveram ao menos uma parte do meu apetite. Suficiente para recuperarmos a balança positiva e comermos iguarias em Recife.
Nos cálculos dessa insistente mulher planejadora, teria condições de eliminar a necessidade do remédio em janeiro. Um desagradável enjoo noturno rápido e repetitivo não me permitiu. A essa altura eu já estava cogitando estar maluca e imaginando o sintoma. Dessa vez a sugestão médica foi acupuntura e aí aos poucos podemos ir retirando o dramin. Saí de lá otimista.
Comecei as sessões nos últimos dias. Na primeira, logo se viu que não era loucura porque os pontos mais sensíveis doeram bastante. Já fiz acupuntura antes, não sinto dor exceto no lugar que está o problema. Ainda não sei como vai evoluir. Espero que flua bem.
Nesse meio tempo, tivemos nosso primeiro encontro com a doula, a profissional que irá nos acompanhar no trabalho de parto e também no hospital junto com a equipe médica. Ela veio aqui conversar sobre meu corpo, nossos anseios, dúvidas, exercícios legais para preparar nosso nascimento. Enfim… em meio ao papo falamos no dramin, meu quase santo, e a importância da tentativa de ficar sem o fármaco para minha própria percepção de sensações ser mais próxima da realidade. Parece ser o objetivo de todos.
Horas depois da conversa, estava no sofá esperando a hora de ir ao cinema assistir Anora - recomendo muito - e me ocorreu o seguinte: meu plano intelectual está capenga por causa do remédio. Eureca! Não morro de sono como no início do tratamento, mas estou letárgica. Percebi claras mudanças quando começamos a testar novos horários e dosagens.
Tenho repetido por aí em muitas conversas que meu cérebro e meu foco estão como uma gelatina. Culpava a gravidez e seus hormônios. E há sim uma influência também, afinal tem um ser humano em construção aqui dentro. Mas, o remédio está, muito provavelmente, depletando os meus neurônios de vez.
Estou em padecimento. Não avanço muito semana a semana. Reclamo em toda sessão de terapia. A frustração me acompanha com frequência. E agora não sei ao certo se tenho mais saudades dos livros em si ou da pessoa que sou quando estou imersa em leituras. Saudades de si mesmo é um sentimento comum entre grávidas (as já paridas devem perceber o mesmo).
A única vez que senti algo semelhante no campo intelectual foi quando estava muito triste, na pandemia, antes mesmo desta newsletter existir. Não é o caso agora. Isso deixa tudo mais complexo porque as ideias vem, há um lado meu operando normalmente e outro sem conseguir levantar o braço. Não me reconheço sem o meu cérebro de antes. Me lembra o filme sobre Alzheimer em pessoas jovens com a Julianne Moore como protagonista, Para sempre Alice - também recomendo.
Um dos meus maiores medos sempre foi me tornar vazia ou sofrer de uma doença que me retirasse a capacidade de aprender e memorizar ou de uma doença que me afundasse tanto que eu perdesse o interesse na arte. Para ser honesta, tenho medo de doenças paralisantes. Esse é meu pânico de vida. Neste momento, não estou doente. Estou apenas grávida. É um corpo valendo por dois e operando em um sistema bem diferente do normal. Como diz minha médica, se a gente apresentar as mesmas taxas hormonais, de colesterol e outros marcadores de saúde de uma gestante sem estar gestante seria um caso de doença grave.
Neste cenário, minha filha não está convivendo com a mãe dela na versão inteira a qual conheço. Quando consigo escrever, ela costuma dar saltos animados na barriga. Deve gostar do gosto da mãe produzindo feliz, mesmo que seja um texto usando do intelectual para falar de dramin, vômito e vazio.
Ainda há a possibilidade de conseguir tirar o remédio e descobrir que não era nada disso e eu continue operando em ritmo lento pois meu corpo e mente estão priorizando outros caminhos. Talvez meu apego à intelectualidade dos livros e pesquisas seja só mais um entrave a ser ultrapassado. Preciso mesmo estar disciplinada nos estudos para um texto ser bom? E toda minha bagagem? E todo aprendizado do não erudito? Do instinto materno? No fim das contas, com ou sem remédio, o agora reforça que se o controle já não era possível, depois de gerar um bebê, ele vai pelo ralo para nunca mais voltar.
Seja lá qual for a causa do caos momentâneo, parece que ando precisando me abrir mais para o inesperado e o desconhecido. Talvez até para ser mais eu e menos a tal intelectual idealizada. Não basta mais conversar com o universo, rezar e as miudezas que eu fazia. É preciso perder o medo do que tem atrás da porta. Nessa escuridão, pelo que ando percebendo aqui, meu cérebro tem sua relevância, mas parece que quem manda mesmo nessas palavras que conduzem meu aprendizado, minha memória, minha escrita é algo maior. Mais animalesco, mais instintivo. Menos racional, menos programado.
Para além do repertório bibliográfico, não preciso ser ninguém menos do que eu mesma para entregar um bom texto, disso eu já sabia há tempos. O que não significa que era fácil de praticar, afinal quem somos nós é a pergunta de todo ser consciente ou questionador. Só que agora sou outra. O mistério sou eu e o texto desta desconhecida sai da cartola mais no impulso do que na ordem. É tempo de soltar as feras.
Tinha como enviar o primeiro texto do mês com outra música? Será meu mantra!
Como já deve estar claro e ficar me repetindo é meio chato, o ritmo aqui anda outro. O trabalho de gerar um bebê para este corpo está sendo uma grande aventura. É deliciosa, intensa e por vezes desesperadora. Sendo assim, sempre que meu faro animal encontrar as palavras que cabem neste espaço, aparecerei. Agradeço a compreensão. Malu manda saudações também.
Um semana com as feras à solta.
Um beijo,
Gabi
Quando estava grávida fui à consulta mensal com a obstetra no prédio errado e disse um nome que nem era próximo do dela (disse Dra. Elizabeth e o nome dela é Dra. Simone!!). Depois desse episódio, entendi que essas confusões seria meu "novo normal" até parir. Pietro nasceu há 15 anos e nunca mais fui a mesma. Porém, mais feliz! Bem mais feliz!!! :)
Sempre adorando suas palavras, Gabi ❤️