Revirando gavetas
Recorri a um subterfúgio jornalístico, remexi arquivos e esta newsletter saiu. Ufa!
No jornalismo temos uma expressão chamada matéria de gaveta, consiste em sempre ter algum material não sazonal salvo para usar em dias que algo deu errado ou que sobra espaço no jornal. Pois bem, hoje teríamos o Para refletir, um ensaio mais longo, mas dado que estou em trânsito esta semana, não saiu nada deste cérebro além das obrigações.
Então, aproveitando que maio tem cinco segundas, fui sorrateiramente a minha gaveta de mini textos de ficção e roubei de lá. Para garantir uma subversão, peguei um sazonal, ou seja, o tema não tem nada a ver com maio, afinal é sobre o Natal. Deve ser porque este mês tem tido ares de dezembro para mim. Aquela sensação de finalizar, celebrar, confraternizar, recomeçar sabe? Ainda tem meu aniversário (dia 19, registrem aí!) trazendo uma idade potente, os 35.
É isso, sem mais delongas…
O Natal dela
Desceu as escadas carregando a mala pesada. Os olhos ardiam como nos dias de outono com alta poluição. A pele do rosto estava seca e sensível. O corpo apenas seguia o movimento natural descendo os degraus e se mantendo em equilíbrio. Na cabeça ecoava a última discussão e o veredicto. Não quero mais. Foi o que disse enquanto ela olhava para a decoração de Natal verde com rodelas de laranja seca e muitas luzes. Foi muito bem pensada e executada cheia de expectativas.
Lembrou de quando foi comprar a guirlanda, ainda em novembro, sem sequer imaginar que a vida mudaria dali uns dias. Agora, na véspera da sua data preferida no ano, o peito pesava e a garganta entalava. As pessoas estavam loucas nas ruas, comprando presentes e em filas de padarias. Crianças pediam brinquedos a Papai Noel. O plano era ela ter tudo. Planejou cada detalhe. As roupas, os presentes, as comidas e até o cheiro de uma vela especial. Esqueceu de calcular o amor.
Não percebeu a ausência. Pudera! Finalmente um Natal com alguém para dar as mãos. Estava em plena alegria. O silêncio era palpável. Isso ela sabia. Mas, ele a beijava e tocava. Como poderia ser ela a causa daqueles olhares distantes? Com certeza era a saudade dos pais.
Não era. Ele não a amava mais. Talvez nunca tenha amado.
As lágrimas não resistiam e teimavam em escorrer e molhar sua camiseta preta, sempre útil quando necessitava de praticidade. A cada degrau abaixo, uma nova memória. Os risos a dois. Os vinhos. O sexo. A distância repentina. A solidão. As comidas da ceia que estavam para chegar. O uber chegou enquanto ela pedia para as entregas serem em um novo endereço.
Entrou no carro, olhou para o prédio sem querer se despedir e lá estava ele na varanda com o pisca pisca ligado. Pediu para o motorista esperar um minuto. Subiu de volta, dessa vez enérgica e com fôlego curto. Abriu a porta, arrancou as luzes da tomada, jogou a árvore no chão, pegou a guirlanda e desceu as escadas com pressa e sem explicações. O silêncio agora era dela. E o Natal também.
Espero que tenham curtido essa minha face da escrita, ela já apareceu aqui uma vez há alguns meses.
Que a semana seja leve e o tempo me ajude a arrumar tudo para meu cérebro voltar ao normal.
Um beijo, Gabi.
Oooh! Quem de nós nunca esteve com uma data frustrada? Uma comemoração cujo planejamento ficou entalado? Belo texto..