Quem não desiste nunca é mulher
Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer
Semana passada, após um encontro com uma amiga, peguei um uber para voltar para casa. Era noite. Mas, não tanto. Metade do trajeto foi em paz e outra metade foi com o corpo tremendo. O motorista errou a rota, achei que era só um engano (e poderia ser). A coisa foi se estendendo e quando vi estava indo para o sentido oposto. Quando ele ignorou a orientação do gps, falei: o senhor está no caminho errado. Ele justificou que era o mais rápido. A partir daí tomei a rédea e fui a guia da rota. Para minha sorte, era um pedaço da cidade que domino.
Quando finalmente estava na portaria do meu prédio abri o app novamente e a pergunta “seu caminho foi muito longo, você está em segurança?” estampou a tela. Quase desabei no chão. Mesmo sob perigo, ainda cogitei que EU pudesse estar exagerando. Só aquela mensagem autorizou meu medo. Entrei em casa e agradeci por estar viva e bem. Já mais calma, disse a meu marido: na próxima vida quero ser homem.
A gente sabe que mulher sofre. Tem que gritar, tem que falar mesmo, tem que botar pra foder, Elza Soares
Para ser honesta, nem é um interesse real. Amo ser mulher. Mas, ser mulher neste mundo cansa. O medo é a nossa rotina. Me sinto atordoada. Em uma decisão iludida, para sair dessa sensação pesada, abro o Instagram. A tela me apresenta imagens belíssimas de vidas distantes e ao mesmo tempo uma boa amostra, cada vez maior, da mesma realidade que busco fingir não existir. Era para ser um distrativo, mas o sentimento mais vivo é a angústia. Em seguida, vem a culpa por me colocar nesse ciclo sem fim de tentativa de fuga misturada com autoflagelo. Mais uma vez, minhas costas carregam penitência.
Foto: Annie Spratt
O risco e o medo seguem nos encarando todos os dias com ou sem a falsa realidade das redes sociais. No uber, na esquina, no ônibus, nas festas. Ainda pode piorar e estar na sua casa, na sua família, na sua roda de amigos. O machismo se entranha até em nós mesmas. Em atitudes, comentários e julgamentos. Estamos tomados e tomadas por essa nuvem pesada cheia de trovões e raios. Como não querer escapar?
Nós todos não podemos ser bem sucedidos, enquanto metade de nós é retida, Malala Yousafzai
Esta nuvem causa tempestades diversas e absurdas, como uma palestra sobre mulheres na política só ter homens palestrando em pleno 2022 (do @grupo_voto), um áudio vazado com a fala de um deputado analisando sexualmente mulheres em fila de refugiadas de guerra, assassinatos - pelo menos cinco mulheres foram assassinadas ou vítimas de violência por dia em 2020, segundo dados da Rede de Observatório da Segurança - , diferenças salariais, menos livros de autoras nas estantes das casas, mortes em consequência da busca por uma beleza perfeita. Esta lista não tem fim. Nem as crianças são poupadas, pois as mães precisam, muitas vezes, lutar para os genitores pagarem a pensão. O que se faz diante de uma situação como estas? O que se faz para o céu limpar?
Não tenho uma resposta concreta. O que eu sei é que a vida é como ela é. Isso aprendi pesquisando sobre esperança, acreditem. Ser esperançosa não é deixar de sangrar, como bem escreveu Belchior em outras palavras, é resistir.
"Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro", Belchior
"Sei que a esperança faz parte da luta. Se quisermos que nossos filhos desenvolvam altos níveis de esperança, precisamos deixá-los travar suas próprias batalhas. Além de amor e aceitação, o que mais quero que meus filhos desenvolvam é um profundo sentido de esperança.", escreveu a pesquisadora e professora Brené Brown, no livro A coragem de ser imperfeito. É, portanto, saber e viver as batalhas e ter clara consciência dos perigos, riscos e ameaças e também dos golpistas e abusadores, seja lá que cadeira ele ocupe.
É essa clareza que nos traz uma dose de proteção. Não há espaço para um mundo de fantasia quando o que queremos é recuperar a esperança para enfim chegarmos em dias melhores. Não significa também que aceitar a vida como ela é implica viver no pessimismo, se entregar às notícias ruins e prejudicar sua saúde mental. É sobre prestar atenção, ouvir sua intuição, acessar o racional e lógico. Informação é poder, dizia a escritora e jornalista americana Joan Didion e adoro repetir aqui.
Quando saímos do mundo fantasioso, costumeiramente cresce a sensação da raiva e a vontade, genuína, de sair derrubando tudo. Também pode acontecer desejo de desistir, se afastar, fechar os olhos novamente. Respira. É só a fase da piscina gelada, a gente acostuma com a água e depois passa a flutuar entre os dois sentimentos entendendo a hora de cada um. Às vezes precisaremos da raiva e em outras vezes da tal fuga. Tudo bem. Eu vivo entre querer deletar o Instagram, assistir romances dos anos 90, compartilhar posts com muita raiva nas palavras e escrever dosando a temperatura para inspirar ações mais concretas (espero ter acertado aqui).
Há sonhos que devem ser ressonhados, projetos que não podem ser esquecidos..., Hilda Hilst
Dito isto, neste 8M, minha aspiração é por esperança, alegria, uma dose de raiva e celebrações pelas conquistas. Faça um flashback, resgate o que mudou. Acabou a banheira do Gugu, acabou o tio da Sukita, acabou a Verão na propaganda de cerveja. O áudio vazado está na mídia e faz o parlamentar perder o mandato, tem vozes negras nas redes sociais e no cinema, tem heroínas da Marvel, tem menina no skate. Há razões para continuar.
Foto: Wilhelm Gunkel
Que você não abandone suas fontes de prazer e saiba quais elas são. Encontre suas amigas, ame, escreva, dance, cante, pinte, cuide das plantas, corra, lute, cozinhe, leia. Reabasteça a sua energia. Às minhas amigas, na mensagem do grande dia, enviei a seguinte frase:
Que a gente siga tendo energia para levar adiante a luta por nossa felicidade.
Para todas nós, é o meu desejo.
Importante: o original deste texto foi publicado no Dia Internacional da Mulher de 2022, no antigo site da Tempo para você. Talvez você até já tenha lido. Para esta edição, atualizei e editei. O trouxe de volta porque ontem foi a primeira fase das eleições no Brasil. Vencemos uma batalha, a muito custo, portanto ainda tem chão. Acredito na nossa força, faremos uma caminhada para o amor e a democracia. Juntas. Por isso, trago aqui a esperança.
Ps: A frase do subtítulo, do coração esperançoso, é da Gal Costa.
Não poderia faltar a música do sentir, no texto original usei I'm a woman, da Emmy Meli ouça aqui. Para hoje gostaria de uma voz brasileira, nada mais justo. Vamos começar a semana na vibração de Bethânia.
É boa hora para assinar o clube do livro Tempo para você! Se você entrar esta semana, dá tempo de ler o livro do mês e participar do encontro de outubro. Para assinar e saber mais, clica aqui. O livro é o Desconstruindo a ansiedade, do psiquiatra e professor da Brown University, Judson Brewer. Estas leituras vindas de médicos e cientistas são ótimas para o formato grupo, ajuda a compreender diversos argumentos. O encontro ao vivo será no dia 23/10, um domingão, às 16h, online.
Este mês tem 5 segundas, por isso teremos newsletter extra - aguardem - e também vou dar um upgrade em uma das sessões. Cheia das novidades às vésperas do fim do ano. Pois é, já já é Natal e, ainda bem, 2023.
Novembro tem evento sobre newsletter e leituras online. O texto e o tempo acontece nos dias 05 e 06 de novembro e já está com inscrições abertas, aproveitem porque a programação está incrível a um preço amigo. Agradeço desde já a Vanessa pelo convite. Para participar, clica aqui.
Um abraço, boa semana. Respirem fundo e vamos em frente.
Gabi.
Quem não desiste nunca é mulher
Esse teu texto. Essa tua reflexão. Hoje.
Respirando fundo aqui!