“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”, Guimarães Rosa
Não sei precisar quando tudo começou. Pode ter sido até antes do meu nascimento. Talvez tenha sido nos tempos dourados de JK com Brasília sendo levantada e o american dream of life inebriando o vento. Talvez tenha sido nos anos 1980 com a energia da derrubada da ditadura, as Diretas, a trilha sonora dos ex exilados ao fundo. Ou ainda pode ter sido com a internet adentrando as casas com a promessa de um novo mundo com cenário semelhante aos Jetsons. Minha única certeza é que em algum momento uma ilusão nos invadiu e nos deu - não sem alguma soberba - uma ideologia até bonita.
Seria possível, nas nossas concepções, construir um território - físico, geográfico, digital, empresarial ou estatal - livre de gente chata, pilantra, escrota, ruim. O delírio tem lógica na psicologia e em outros campos. Estávamos sofrendo, ninguém aguenta o clima de ódio, morte, reclamação e tortura por anos ou décadas. Era necessário ter algo a se agarrar. Unir a tal necessidade ao ego de acreditar sermos nós mesmos capazes da façanha de um mundo ideal pode ter sido o começo do erro. A premissa, afinal, é baseada numa outra ilusão. A de que nenhum de nós, bons cidadãos, jamais seríamos os chatos, pilantras, escrotos ou ruins.
Já acreditei nesse projeto e essa crença já me quebrou muito o coração. E também alguns sonhos.
Não acredito que o mundo é povoado por maldade e nem que estamos fadados ao fracasso. Ainda sou uma esperançosa e se for preciso segurarei a última bandeira da paz.
Acontece que meu coração e meus sonhos partidos me levaram, pouco a pouco, a enxergar a mim e aos outros de uma forma menos idealizada. Não sei se estou certa assim como não sei quando a ilusão começou, inclusive pode ser que venha desde a existência do humano número um. O fato é que nas últimas semanas, por incrível que pareça, os chatos e as pessoas reclamando dos chatos me levaram a talvez quem sabe entender um pouco mais sobre as minhas decepções que também são coletivas. Não existe o território perfeito. Nem existirá.
Explico como isso se deu.
O Substack, a plataforma da qual utilizo para enviar este texto, se tornou um app e há alguns meses ganhou ares de rede social com um espaço chamado Notes onde é possível publicar comentários; muito semelhante ao Twitter. Quem costuma usá-lo são escritores, em maioria, e os mesmos, carentes de um lugar para chamar de seu, começaram a apreciar muito essa troca. Os introvertidos não escritores foram chegando também, acreditando ser o lugar ideal para esse perfil. Nas últimas semanas, os usuários aumentaram substancialmente e todos traziam mensagens de amor e celebração. Observei a expressão "finalmente um lugar sem brigas" se repetir constantemente.
Com o volume de gente e a mistura que só uma boa diversidade traz, começaram a surgir Notes de pessoas ditando regras de como deveria ser uma newsletter no Substack e quais temas poderiam ter e quem era capaz ou não de publicar. Logo menos, respostas vieram com ressentidos reclamando dos chatos. Trabalhos foram criticados. O caos se instalou ainda que em bem menos volume que no Twitter devido a proporção de usuários.
Quando acompanhei essa confusão de camarote me perguntei se as pessoas realmente acreditaram ser possível uma rede de desconhecidos ser mesmo uma versão da Era de Aquarius, o período de contracultura dos anos 1960 associado ao movimento hippie. Obviamente, a turma que viveu Aquarius também enfrentou conflitos entre si (leiam Joan Didion!), mas a idealização do passado nos leva a crer que tudo fluiu lindamente com trocas sem dinheiro envolvido.
Não há pratos limpos
Existe um grupo de empresas no mundo que recebem um selo chamado B corp (empresas B). É um certificado entregue por uma organização criada em 2006, nos Estados Unidos, chamada Movimento de Empresas B. O que isso significa? "São empresas que possuem sua atuação alinhada com projetos e processos que visam promover impactos sociais e ambientais positivos, além de obter lucro", segundo os próprios criadores. Podemos concluir que os valores, em termos morais, desses negócios são respeitosos com a sociedade, o meio ambiente, o bem estar social e o progresso.
No Brasil, 230 empresas têm o certificado. Será que em todas elas, todos os funcionários, líderes, empresários são coerentes com os valores do negócio? Será que não tem nenhum chato, escroto, pilantra ou ruim andando pelos corredores delas? É possível selecionar apenas colaboradores moralmente éticos? Ainda que haja um interesse honesto empresarial de contribuir com o planeta e as pessoas, só será possível descobrir uma atitude antiética na prática da atividade e dado os tamanhos desses locais, muitas vezes passa despercebido. Os leitores e leitoras certamente já foram vítimas de algum desses puxadores de tapete alheio em seus devidos trabalhos mesmo sem o selo B.
Quero dizer que em nenhum grupo social, incluindo os com boas intenções, é possível não ter um desvio. Nem em substâncias químicas há uma harmonia perfeita aos nossos olhos. Na verdade, não há nem em nós mesmos.
Há uns meses, fui ao dentista fazer a cirurgia do siso e ele me disse, muito animado, que devia ser divertido ser jornalista. A reclamação do médico era ter uma convivência mais intensa com iguais e aí nunca havia histórias muito interessantes na mesa. Eu respondi: olha, para algumas pessoas eu sou o cavaleiro do apocalipse, acho que não curtem muito minhas falas. Por que?, ele perguntou.
Como uma pessoa muito interessada em informações e notícias, geralmente, entre meus amigos, sei de algumas coisas ruins e tragédias primeiro. Os aviso: está tendo mais assaltos em tal lugar, tomem cuidado | nossa democracia está ameaçada | evitem ir votar usando tal cor porque pode ter problema nas ruas (essa foi em 2022). Na maioria das vezes, me acham uma chata preocupada demais. E nem estou adentrando em outros assuntos e situações. Um exemplo rápido: estar em um jantar com pessoas não tão íntimas e opinar sobre assuntos profundos de forma mais profunda. Ninguém queria aquele papo cabeça - e eu nem sou tão nerd -, elas só queriam reclamar. Aí vai eu, a chata, analisar o caso.
Os maléficos
Já sobre ser ruim, escroto e pilantra, tem alguns de nós que escapa. É o que me parece. Nem todos usam artifícios cruéis para conquistar seus feitos, ainda bem. No livro Em busca de um sentido, o autor Viktor Frankl, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto, reforça a importância de acreditarmos nos bons e nos juntarmos a eles. Me encontro alinhada com Frankl.
Mas, ainda temos gente pior do que os tipos apenas detestáveis. São os seres humanos maléficos. Eles massacraram e massacram outros - judeus, negros, índios, mulheres, gays, trans - e estão neste planeta não sabemos o porquê. O esforço dos esperançosos é para diminuir o número dessas criaturas, mas, entendi nessa minha leva de coração e sonhos partidos, que não chegaremos no zero. Teremos de ser incansáveis em denúncias e cobranças à justiça.
Para os puxadores de tapete, os escrotos não criminosos, ultimamente entrego apenas risadas. É tudo que tenho para hoje. Talvez um dia eu consiga vencê-los melhor.
Entre tanta gente chata
No ambiente digital, temos os chatos profissionais. Ok, fora dele também. Eu sei. Para que a pessoa vai ditar regras sobre o texto dos outros? Vai saber! Ainda tem os que publicam por aí posts enormes dizendo como se deve criar filhos, como se deve investir dinheiro, qual livro se deve ler e até como se divertir. Se você tiver sorte, nunca se sentará na mesma mesa que esse tipo. Acho difícil escapar, especialmente após começar a trabalhar.
Entender mesmo o porquê dessas pessoas existirem me parece ser uma resposta para quando atravessarmos algum portal. Talvez nem assim. Eu só sei que elas estão por aí e nos resta seguir andando com as chatices alheias. E essa é a minha quebra de ilusão que tem deixado meu coração e meus sonhos mais protegidos. Procuro me juntar aos bons, como sugere Frankl, mas mesmo assim compartilharemos chatices. Além disso, tem certas ocasiões que não dá para escolher - nem eu e nem os outros.
Quem sabe se a gente aceitar que há e sempre haverá os chatos, escrotos, pilantras e ruins, não seja mais fácil enfrentar nossas batalhas internas? Ter melhores ideias para garantir a sobrevivência do planeta? Ou ter políticos eleitos mais pé no chão e com garra suficiente para enfrentar mudanças necessárias? Ou ainda escrever os próprios textos livremente ao invés de posts reclamando dos posts dos chatos? Me parece mais útil suportar os chatos do que contar com o bom senso deles.
Talvez essa minha ideia também seja uma ilusão. Espero que não. Conto com os bons.
Vi por aí
Como não lembrar dessa música? “E no meio de tanta gente, eu encontrei você / Entre tanta gente chata, sem nenhuma graça, você veio”
Da importância de estar em contato com a bondade de
esta fala de Vera Iaconelli:
“Falando deles, é de mim que falo”:
Uma semana com menos chatos por aí.
Gabi
excelente mensagem, agora vamos aguardar alguém repostar no notes e pescar uns chatos e o ciclo sem fim hehehe
Acredito que no mundo existam mais pessoss boas do que ruins.
Mas na intersecção desses dois conjuntos, tem as chatas. E me vejo muitas vezes nesse lugar, mas acredito estar do lado dos bons. Reconhecer minha chatice já é um passo para tentar domá-la, né? Vamos pensar positivo. Hahahaha
Ô, Deus!
Um beijo, Gabi.