Observações cotidianas #5
um pouco de socialização, mulheres sem chorar, a vida de artista e outras coisitas
Entro na academia e ainda na catraca começa o alvoroço. Está assim desde que minha barriga deu as caras de forma mais explícita. Alguns já sabiam da novidade, mas ela toma forma mesmo quando nosso corpo arredonda. Os olhos se voltam para mim acompanhando nosso crescimento. São desejos de saúde, relatos, historietas aleatórias, perguntas, abraços. Agora, demoro muito mais tempo fazendo a série não só pelo cansaço natural da fase, mas pelos intervalos de conversas. Tem até os mais tímidos que olham, olham e só depois de um tempo tomam coragem e se aproximam. O treino virou meio festa, meio encontro na praça de antigamente. Não me incomoda. Para quem trabalha sozinha e passa horas com os próprios pensamentos é de bom tom ser invadida por outros de vez em quando. E se não for para viver o falatório, pra que morar no Rio de Janeiro? É uma das razões de ser feliz aqui. No perímetro no qual mais ando no bairro, sei que se tiver qualquer piripaque numa esquina, alguém vai me reconhecer e me ajudar. Sumi nos meses mais enjoados - e difíceis, vou repetir isso muitas vezes - e quando voltei, o moço que vende frutas na calçada disse que já estava estranhando minha ausência. É assim que funciona aqui, como uma grande vila. Ao menos por onde estou. Mesmo que esses encontros sejam meio frouxos e a amizade carioca não seja íntima logo de cara, sinto afeto. A gestação tem me feito ser mais coletiva e social. Há sim muitos momentos em que tudo que eu quero é um quarto fechado e minha introspecção. Assim o faço, me coloco na concha. Nos espaços entre esses mergulhos, na rua, no sol, me permito abrir o peito e receber as boas vibrações que vem. As não tão boas a gente tenta filtrar; algumas escapam infelizmente. Desde antes de ser feita, minha menina já dava sinais no meu corpo de como seria essa nossa aventura. Sentia a energia solar. Fora da barriga, não posso garantir se assim será, mas por enquanto está sendo festiva e expansiva. Vamos bailando e treinando musculação.
Assisti Anora, o filme vencedor do Oscar antes da premiação. Se você não sabe, a história é sobre o casamento de uma prostituta com o herdeiro de um magnata russo e seus desdobramentos. Ani - ou Anora - come o pão que o diabo amassou, é humilhada de tantas formas que dá nó no estômago e ainda vive tudo isso na solidão. Passei o filme inteiro pensado: essa mulher é dura na queda, não chora uma vez. Tem cenas que dá pra sentir o choro engolido e preso no peito da personagem enquanto seu rosto segue seco. Não vou revelar o final, mas diz muito sobre isso: poder desabar. Em outra película do Oscar, nosso querido Ainda estou aqui, temos Eunice Paiva. Mulher e esposa dos anos 1970, em plena ditadura. Até Rubens sumir, ela é a dona da receita de suflê, angustiada com os acontecimentos do país e preocupada com seus filhos. Conduz a casa com maestria e até certo recuo quando o marido insiste no otimismo. Depois precisa tomar as rédeas e levar a família para seguir em frente. Até quando ela e uma das filhas são presas, o tom é de olhos fundos sem lágrimas. Eunice não chora. Em uma entrevista sobre a personagem, Fernanda Torres fala sobre isso. Relaciona com a atuação do drama na linha dos gregos e com as informações recebidas sobre a real Eunice. Ela precisava sobreviver e ponto. Aí vem o terceiro filme consumido por mim no cinema, nesse caso não concorre ao Oscar e nem seria o caso. Aqui, estrelado por Tom Hanks, é sobre o arco temporal na vida de algumas famílias. Tem recortes desde o homem pré histórico, passa pela pandemia e chega no agora. Em um deles, há uma família mais central que começa a existir nos anos 1970. Um casal formado por uma mulher que gostaria de trabalhar e estudar Direito e um homem que sonha ser artista com desenhos e pinturas. Tudo cai por terra com o clássico: ela engravida. O então pai vira corretor para sustentar todo mundo e a mãe se torna mãe e dona de casa. Ela passa alguns anos ainda querendo mais. Reage. E em meio a tudo isso descobre que a sogra também tinha sonhos e abriu mão. Esta nunca fala sobre nada exceto o jantar e bobagens, é resignada ao silêncio. Só deixa escapar sua dor em uma única conversa com a nora. Não chora. Passei dias pensando quando perdemos o direito de chorar. Por que as personagens femininas, diante da dureza da vida, precisam se manter fechadas e sem lágrimas? Se a gente chora, na vida real ao menos, vira uma marca: fulana é sensível demais, não aguenta o tranco. Em um episódio da série Sex and the city, lá dos anos 1990, há uma conversa entre as quatro amigas sobre choro no trabalho e o peso disso nas carreiras. Seguimos na mesma em 2025. Para os homens nunca foi de bom tom se mostrar frágil. Ainda é motivo de piada mesmo em situações emocionantes como o próprio casamento. No entanto, o sexo masculino nas retratações dos filmes citados tem o direito de reagir. A raiva está liberada. Gritar, esbravejar, bater a porta da casa também pode. A nós, resta manter as reações entaladas na garganta para demonstrar firmeza. É de chorar.
Há uma constante reclamação entre artistas e outras vertentes de trabalho independente sobre a presença nas redes sociais e o esforço da divulgação do seu produto/serviço. Eu mesma já reclamei. Mas, exceto no caso da pessoa fazer isso por lazer, não tem outro jeito e nunca teve. Mesmo os com facilitadores, ou seja com sobrenomes demarcados, precisam frequentar certos lugares, fazer contatos em festas e afins. Esse seleto grupo geralmente já tem o convite ou basta pedir qualquer coisa e está nas mãos. Nós, reles mortais, temos ainda de descobrir os points de quem é importante no mercado. Noutros tempos só tinha esse jeito de existir em certos ofícios. Foi assim para Machado de Assis, Clarice Lispector, Hemingway e até os reclusos modernos como Murakami (japonês que foi morar nos EUA para ampliar o alcance) e a misteriosa Elena Ferrante (tenham certeza que ela tem os contatos certos). Agora, pensando no Brasil, pelo menos quem mora fora do eixo Rio/SP consegue se expor através da internet. Por mais camadas problemáticas que haja nas redes sociais e por mais terrível que seja para algumas pessoas usá-las, mostrar o que você faz como um artista trabalhador está no pacote do exercício da função. Ninguém vai nos descobrir assim sem mais. E eu sei, haja saúde mental. Estamos mais encurralados em ambientes digitais não saudáveis. Pago uns preços altos por escolher salvar meu cérebro às vezes. E também por meus limites conscientes. Todos nós temos os nossos. Descobrir um jeito de fazer seu caminho e delinear o que sim e o que não são formas de fazer a parte chata com menos machucados. Talento não basta e nunca bastou. Vale salientar que o esforço nem sempre nos compensa porque a meritocracia não é a métrica que rege o sistema de trabalho nenhum. Desculpe por essa dolorosa verdade.
Renata Corrêa fez um ótimo texto sobre a artista como classe trabalhadora e vale ler, conecta um pouco com a nota acima. É preciso olhar para essa função como o ofício que ela é e isso precisa vir tanto do público consumidor, quanto do contratante quanto do contratado.
Estranhamente minha mente decidiu que pode voltar a operar perto da normalidade neste final de gestação. O problema é que meu corpo não acompanha. No fim de semana passado quis muito ir à praia, o dia estava belíssimo. Na realidade, dormi encostada na almofada. Neste momento escrevo no bloco de notas me sentindo cansada, com uma barriga em contração de treinamento e com sugestões de descanso. Houve algum desencontro entre corpo e mente dentro do meu eu e não sei lidar muito bem. Enquanto isso, cochilo aqui e ali e escrevo no celular mesmo. Em algum momento edito no computador (não tenho idade para editar nem fazer compras no celular) e mando para os leitores. Deve ser um treino para o que vem por aí.
falou sobre isso no Instagram dela outro dia, leia aqui. Não que eu não usasse o bloco de notas antes de estar grávida, sempre fui adepta, mas o tempo entre escrever por lá e chegar na newsletter era menor. Agora retomo as linhas precisando lembrar da intenção quando as comecei para poder dar andamento. É o que tem pra hoje e pode ser até bom.Cortei o cabelo e pintei com tonalizante. Sai de ambos os lugares falando que não sei quando volto. Este mês meu tempo está em suspenso. Quanto decidimos parir no modo natural, não há programação nem data marcada. Nos resta viver um dia atrás do outro sem saber ao certo em qual deles haverá choro de bebê. Além de todas as questões médicas sobre saúde feminina, a cesária compulsória também se torna recorde por isso. Com a mulher no mercado de trabalho, agendar um parto é muito mais agradável para as empresas. A profissional termina seu último dia com todos os checks na mesa. Sai pela porta sabendo a data de voltar. É tudo articulado. O ser humano adora a sensação de controle. Nessa toada, parir e nascer se tornaram eventos casuais na agenda. Quase mecânico. Nunca quis que fosse assim. Mesmo na época que eu tinha medo do parto vaginal e acreditava que a cirurgia era a melhor forma de trazer alguém ao mundo. Nem eu nem minha irmã nascemos com data marcada apesar de termos nascido pelo corte abdominal. Tive um pensamento banal: o quanto isso impacta o mapa astral daquela pessoa? Hahaha Enfim… abril! Cabelo cortado, sem fios brancos porque sim, malas prontas e uma boa dose de paciência. Em breve, estarei com minha menina nos braços.
Amo essa citação. Onde você se sente em casa?
Esse vídeo na Bahia para lembrar de festejar.
A dor não é para sempre (a alegria também não), os elos fortes podem ser.
Tudo que desejo a minha filha é liberdade.
Por hoje é só. Uma semana sem choro guardado por aí.
Beijo,
Gabi
Gabi, sobre parto agendado, eu penso muito no impacto no mapa astral hahaahha
A boa hora (e um auspicioso desenho no céu) para você e sua menina.
Um beijo.
Que delícia te ler amiga ❤️❤️