Me acostumei a esquecer de onde eu vim. Respondo Recife para ser prática e, nesse hábito, eu mesma comecei a me enxergar como se eu fosse de lá. Quando sai da minha mãe, em maio de 1988, a minha cidade já era um lugar independente há seis anos e comemorava o aniversário naquele mesmo mês, dias antes de mim. Nasci em Camaragibe, na Região Metropolitana de Recife, a apenas 17km da capital pernambucana. Naquela época parecia muita estrada.
Não tenho vergonha de lá, não mais. Nem a escondo com um propósito. Sai de Camaragibe com oito anos, minha irmã tinha dois, e com o tempo e a distância, os tais 17km se tornaram tão diminutos que responder "Recife" na pergunta "De onde você é?" me parecia óbvio. Ao preencher formulários burocráticos preciso me esforçar para lembrar de colocar o nome correto no espaço: local de nascimento/origem.
Quem me trouxe Camaragibe de volta foi imaginar o bairro pobre de Nápoles retratado na literatura de Elena Ferrante, um nome sem rosto já que a escritora nunca revelou quem era. Aproveitei meu tempo de ócio, no último março, para ler a tetralogia da autora cuja única informação que sabemos é o fato dela ser italiana. As quatro obras juntas somam mais de 1500 páginas, eu tinha certeza que levaria um bom tempo para terminar, até porque costumo ler mais de um livro ao mesmo tempo. Em 20 dias já estava órfã de Lenu e Lila, as duas amigas que protagonizam as dores e delícias de uma amizade entrelaçada pelas ruas da comuna napolitana.
Lenu nos revela a história de ambas na palavra entregue nas páginas. Nas entrelinhas encontramos as ruas do lado pobre de Nápoles, os costumes da Itália, o pós II Guerra, a violência, a pobreza, o amor rasgando toda a potência cognitiva humana, as escolhas da vida que determinam o destino, a família e seus percalços e encontros. Li com volúpia. Ferrante me causa isso. É uma escrita viva, vai me puxando, me consumindo; não sossego até saber o fim. Costuma me marcar muito. Mas, tudo que tinha lido dela até aqui eram os livros mais curtos, então logo cessava o furor. Já a tetralogia, certamente por sua robustez, se entranhou na minha circulação e parece não querer ir embora. Tive sonhos com as duas meninas e suas ruas.