As ideias para os textos até chegam e as anoto. Na hora de realmente sentar e digitar, estou seca. Em um dia bom, engrena depois de muito insistir. Não é cansaço. Não o cansaço mental e/ou físico da vida adulta. Talvez seja um tédio. Há um tempo sinto tudo se repetindo no mundo internet. As pautas, os projetos, os papos, as reclamações. Até os tênis estão iguais nos pés mais variados que encontro por aí.
Na tentativa de fuga disso, já fiz mil pausas e afastamentos do digital. Geralmente funcionam para a criatividade e não funcionam para a vida prática/relações sociais. Dado o exemplo dos tênis, nas ruas não estamos inovando muito também. Sair de cena nas redes sociais é mais uma ação de saúde mental - ajuda muito - do que de criação em si. No fim das contas, depois de um tempo entre idas e vindas offline, há um platô nos insights.
Então, mesmo sem abrir o Instagram, os dias na semana passam rapidamente enquanto eu penso, devagar, na escrita da newsletter. Até outro dia, fazia uma primeira versão da edição nas quartas, revisava nas sextas e nas segunda cedinho estava na caixa de e-mail dos assinantes. A última escrevi no domingo retrasado, à noite, editei na segunda de manhã e enviei mais tarde.
Hoje é quarta-feira e a desta semana está se tornando este projeto de desabafo. Não escrevo apenas para a newsletter, tenho outros projetos em curso, e também costumo escrever mentalmente, às vezes ajuda e às vezes atrapalha. Isso pode estar esgotando o baú de pautas. São muitas possibilidades de atrapalhamento.
É como se eu precisasse sair da "vida" para que as ideias ganhassem fôlego. E se desligar as redes sociais já estão se tornando comum, é hora de começar a pensar em outro tipo de fuga. Um retiro, talvez. O conceito de sair de cena para a arte funcionar não é novo. Há até uma aura meio imaginária meio cafona do escritor que vai até uma casa em uma praia com cenário americano e assim termina o escrito do seu livro. No filme Vidas passadas (2023), Nora, a personagem principal, é dramaturga e faz uma imersão num lugarzinho afastado dos prédios de Nova York. No tal lugar, ela e outros artistas se hospedam numa casa rodeada de mato e passam dias estudando e produzindo. Quando assisti a cena recentemente, não senti o ímpeto e assim a ideia de fazer o meu próprio foi cancelada.
A escritora brasileira Hilda Hilst construiu na década de 1960 o que ela apelidou de "Casa do sol"1. Era seu refúgio, depois se tornou sua moradia. Vários escritores amigos passavam temporadas lá, devia ser uma festa e também uma confusão. O projeto faz mais sentido para mim, era a vida dela naquele ambiente e a escrita se entranhava pelas paredes e pelas mesas de café da manhã. Ela não saia da rota para produzir. Quem ia se hospedar lá sim. Decido que eu quero estar dentro da minha rotina fazendo o que sei fazer, assim como Hilda. Não fugir.
O artista afastado de tudo, mergulhado ou numa cena idílica ou na boêmia, não me parece ser do tipo nutritivo para o longo prazo. Ernest Hemingway2 passou seus dias escrevendo - belissimamente, reconheço - embalado por confusão, casamentos complicados, amantes, álcool, vaidades e traumas. Nobel no bolso e saúde mental escoando entre os dedos. Não queremos mais esse fim. Eu não quero, pelo menos. Além disso, ele e a maioria dos escritores da época, eram homens brancos cuja única coisa inescapável era lutar na guerra. Terrível, claro. Mas ao partir não tinham de se preocupar com a roupa para lavar.
Não quero me ater, no entanto, as tarefas usuais como lavar louça e roupa e manter uma casa de pé. Esta conversa vai além. Ao sair da vida acontecendo, a escrita se perde em devaneios. Apesar de termos ótimos clássicos de ficção ou não, os livros de outrora tendiam a passear para bem longe do mundo real. Quem não fazia parte deste perfil e estava com a boca no trombone por forçar a entrada na bolha era visto (a) como menor.
Nem precisaríamos voltar tanto no tempo, na verdade; nos anos mais modernos, a Nobel Annie Ernaux foi vista desta forma na França. Ela fala da vida, das classes mais baixas, da paixão, do corpo. Pouco intelectual, eles dizem. Para atingir o ápice dessa tal intelectualidade, portanto, é preciso viver contemplando um campo deserto e conversando com iguais a você mesmo. Longe de mim querer uma coisa dessas.
Outro dia, em uma provocação de uma aula de escrita da
, ela perguntou sobre nossas obsessões. Assim sem mais, na lata, respondi que era encontrar respostas. Para tanto, preciso de perguntas. Não sei fazer perguntas sem ver o mundo lá fora e as pessoas morando nele. Nem sem ouvir as conversas dos outros por aí. Nem sem ler os comentários aleatórios em posts do Instagram (sim, é sofrido). Nem sem viver as crises de uma mulher comum.Digamos, então, que a solução foi encontrada e eu consiga me alimentar desse universo que é a vida em si, minha mente se tornaria uma caixa sem fundo de ideias? Não. As camadas do processo artístico são mais densas e incluem tempo, ritmo, formatação e aprimoramento.
Não é possível manter a criação com qualidade se a entrega tiver um ritmo de indústria de biscoitos. De algum modo, o retiro é necessário. Só que na prática não é sobre sair de cena, é sobre se abastecer e ter tempo para digerir tudo na sua mente, conectar os pontos. Entendi, nos últimos meses, que ser dona de casa é parte do meu processo de escrever. Nas semanas em que precisei de repouso e não fui a responsável por aspirar a casa, produzi menos textos. Faltou o "refúgio" do trabalho braçal - do qual gosto, vale salientar, e talvez por isso me dê uma sensação de criar espaço para flutuar neurônios.
Na minha crise criativa, cheguei em um ponto chave: é preciso encontrar uma cadência própria de processos. Não se deixar levar pelo ritmo das redes sociais e ao mesmo tempo não tentar se tornar ermitã. Admiro o que o autor japonês Haruki Murakami consegue na sua rotina. Ele não saiu da sua vida para se tornar romancista, como gosta de se titular. Antes mesmo de trocar o Japão pelos EUA, a fim de alcançar novos patamares, criou uma rotina na qual fazer seu ofício fosse parte do dia. Murakami corre maratonas, nada, treina para manter seu corpo forte. Segundo ele, isso ajuda nas horas do escritor sentado na cadeira. Sente menos dores, se concentra melhor. Obviamente, há uma parceira na sua casa dando andamento a todo contexto.
O romancista escreve. Reescreve. A esposa lê, dá os primeiros pitacos. Hora de descansar o texto. Reescreve de novo. Manda para seu editor. Reescreve. E por aí vai até ficar pronto. Às vezes, para dar folga a mente, ele pega uma tradução ou faz um ensaio ou um conto para revistas. Encontrou seu ritmo.
Você deve perscrutar as profundezas de si mesmo. É ao atravessá-las que você atingirá a realidade. A única ferramenta que você possui para atingir a realidade, a única jangada que você possui para concluir a travessia, é o seu corpo. Carreré no livro Ioga
Tem quem precise do retiro literal e sair da cena urbana das nossas grandes cidades. Isso não é um mau negócio. Na minha visão, faz sentido quando é algo para você como indivíduo e não exclusivamente para ser criativo. Se torna um movimento para salvar sua mente e seu coração que no fim são seus grandes tesouros enquanto artista. O escritor francês Emmanuel Carrerè usa a ioga, os refúgios de silêncio em lugares afastados, como pauta e como sobrevivência. Foi sua forma - ainda meio torta como relata no livro Ioga - de lidar com a sua bipolaridade e outras questões de transtornos mentais.
Já eu… Apesar de encontrar a resposta - olha a obsessão aí - para meu vazio criativo dessas semanas, sinto que meu corpo procura uma rotina que não existe mais neste mundo. Enxergo certa rabugice quando a gente insiste em apenas reclamar das mudanças, das novas formas de viver, dos jovens no Tiktok. Não quero ser essa pessoa. Quero estar ciente.
Há uma clara precarização da criatividade, da arte, do trabalho manual, da delicadeza. Há uma supervalorização à pressa, ao raso, ao robótico. Nada disso é bom. Mas, é o tempo onde eu vivo. Vou precisar encontrar o meu ritmo, meu jeito de fazer, no meio desse furdunço do século XXI. Na próxima faxina talvez encontre um caminho próprio. Se não, na semana que vem, a newsletter pode acabar sendo sobre o aspirador de pó. Não seria de todo mal.
1hoje é um instituto com todo acervo de Hilda Hilst, em Campinas.
2: recomendo assistir o filme Hemingway e Gellhorn (2012) para vasculhar mais sobre o autor
ps: se você é detalhista, pode ter notado que citei, em maioria, homens quando se trata de refúgios. É menos complexo para o gênero masculino abrir espaço para acomodar as vivências por questões de sociedade machista. Não quer dizer que eles não sofram nunca e não precisem se esforçar para encontrar seus caminhos. E nem quer dizer que não tivemos grandes autoras no mundo e no Brasil. Hilda, citada no início, conseguiu com muito tranco se manter em pé nas publicações, assim como Clarice Lispector e Lygia Fagundes Teles. Tinham condições financeiras mais favoráveis de antemão. É possível quebrar o padrão e escrever em meio a desgraça como Carolina Maria de Jesus que foi catadora de lixo e mãe solo de muitas crianças. Carolina faleceu e deixou poucas palavras no mundo frente a outros autores. Não havia tempo. Este distanciamento entre as realidades de cada gênero, raça e classe social influenciam na produção e faz com que quem deixe mais marcas históricas, chamadas de clássicas, seja quase sempre quem estava na bolha padrão.
Uma semana criativa por aí.
Beijos,
Gabi
Você já sabe, mas vou repetir: gosto muito de te ler! Sempre me impressiona a sua capacidade de tornar um desabafo num texto cheio de referências que se conectam brilhantemente e enviam a mensagem que você quis transmitir. Que sorte a minha poder continuar aprendendo com você! Um beijo e nos vemos em breve de novo:)
Amei um tanto esse texto e me identifiquei nele todinho. Cá estou num refúgio paradisíaco em que tudo que tenho para fazer é curtir o mar e os pores do sol esplêndidos. Mas confesso, a inspiração tem me faltado na escrita (mas está a mil para outras coisas). Vou e volto! Pautas se acumulam na gaveta e, ainda assim, nada sai. No seu caso, você me pareceu bem inspirada e criativa ao escrever esse desabafo. ♥️