Não se tem um dia de paz neste país
O desejo pela tranquilidade tem nos feito acreditar em uma segurança que não existe?
Há alguns meses, estava fazendo uma meditação chamada "Eu estou aqui, agora; onde está tudo bem" e à medida que eu repetia a frase título como mantra, me sentia mais e mais uma farsa. Em um dado momento, mudei a frase para: "Eu estou aqui, agora; não está tudo bem e tudo bem" e terminei mais aliviada. Era meados de outubro, não tinha como não sentir os impactos das eleições brasileiras na saúde mental, mas não era só esse pequeno recorte do ano que marcava a mim e a todos nós (?).
Só realizei o tempo que estamos expostos ao caos social e político quando li o texto da escritora e roteirista Renata Corrêa, publicado no site Mina Bem Estar em novembro de 2022. Ela discorria sobre a libido, sua falta e sua volta, em um cotidiano estressante como foi o do Brasil nos últimos 10 anos. DEZ anos. Ou seja, o recente outubro foi o ápice de um caos que vinha se desenrolando há anos e sequer percebemos.
Dias (anos) de luta
Independente da sua posição política desde os protestos de junho de 2013 - aquele do slogan "não é só pelos 0,20 centavos" - e de como chegamos até aqui, a quantidade de vezes que repetimos "não se tem um dia de paz nesse país" foi incontável. Tem sido difícil. Mesmo. O aumento de buscas por remédios e atendimentos psiquiátricos mostram em números como estamos. Um estudo da Funcional Health Tech indicava um aumento de mais de 20% no consumo de antidepressivos no Brasil entre 2014 e 2018; com a pandemia, segundo dados recolhidos até 2021 pelo Conselho Federal de Farmácias, as vendas subiram mais 17%.
E essa é apenas a ponta do iceberg. Quem não está consumindo medicamentos, não está necessariamente bem. Na nuance das palavras dos memes, das conversas, dos audios de whatsapp, dos posts nas diversas redes sociais o que mais observo é uma repetição, entre risos de disfarce, de: "estou cansada (o)", "não aguento mais", "o dia é útil, mas eu não" e afins. A atriz Luana Piovani ainda revigorou a pauta explicando que não aguentava mais não poder postar uma foto bonita de biquini porque todo dia tinha algum problema do Brasil para divulgar e cobrar solução.
Provavelmente por esse cansaço, misturamos a reclamação constante com uma negação do que pode piorar. Duvidamos da capacidade de alguém sair na rua e realmente atirar em um cidadão comum. E então, a deputada Carla Zambeli (PL) foi lá e provou que era possível no dia 29 de outubro de 2022 (leia aqui). No dia seguinte, aconteceu o segundo turno das eleições presidenciais, e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi eleito com 50,90% dos votos.
Eleitores da oposição, inconformados com o resultado e estimulados a acreditarem em uma fraude nas urnas, bloqueiam rodovias e se instalam nas portas de quartéis do Exército pedindo por intervenção militar. Os democratas reagiram rindo, fazendo memes e mais uma vez duvidando do que essas pessoas eram capazes de fazer. Corta para 08 de janeiro de 2023. Cerca de 2 mil golpistas invadem o Congresso, o STF e o Planalto e destroem o patrimônio público e as estruturas locais. Ao que parece eles sempre fazem mais do que se imagina.
Não quero crer
A negação da realidade não é um problema exclusivo de situações sociais, como pandemia, vacinas ou o homem pisar na lua. Também acontece quando a pessoa com quem você marca um encontro romântico dá todos os sinais de que é um problema e você permanece porque está apegada (o) a ideia de ter um relacionamento. Até quando você come algo que te faz mal e você finge que não para não precisar viver a restrição alimentar.
O fato é que, sendo pessoal ou não, rejeitar só faz piorar o transtorno. "A distração é uma tentativa de escape que dificilmente funciona. Não se apaga um incêndio ignorando o fogo.", afirma o escritor e jornalista Matt Haig no livro Observações sobre um planeta nervoso. Negar o problema, além de tudo, nos coloca numa situação de não solução porque só posso procurar saídas para aquilo que reconheço a existência.
Negar é sintoma?
Conversei com a psicóloga e escritora Paula Maria, autora da newsletter Te escrevo cartas, para conseguir entender esse negacionismo que nos persegue, em tantos lados. Perguntei a ela se a rejeição da pandemia e vacina e outras realidades seria um sintoma psíquico. Ela me respondeu:
Quando você me pergunta se isso seria um sintoma, diria que sim, se observado e compreendido no cenário em que ele se manifesta. (…) O sintoma talvez não seja curável, como a própria psicanálise defende. Sendo assim, é preciso ouvir o que ele está nos dizendo sobre nossos tempos.
Enquanto eu e Paula desenvolvíamos a conversa, foi publicada uma coluna da psiquiatra e também autora Natália Timerman, no site Universa, cujo tema foi o encontro da loucura e do golpe. Ela discorre:
É preciso resistir ao impulso de classificar o que ainda não entendemos; é preciso manter estranho o que é estranho, aberrante o que é aberrante, tratar o que é crime como crime. É preciso cuidar para diferenciar o que é resquício de ditadura e o que é comportamento de seita, e em que momento ambos se encontram.
Reconheçamos a estranheza, só não vamos nos aproveitar disso para tratá-la com distanciamento. Entendo que apenas daqui alguns anos conseguiremos entender o que está se passando agora. Olhar para trás é uma ferramenta poderosa na terapia pessoal e na história do mundo. Mas, como disse na minha meditação, o presente não está cheirando bem e, muitas vezes, o cheiro vem de um lixo que a gente mesmo está criando. De alguma forma, fazemos parte desse movimento.
Continuo a conversa com Paula, buscando respostas sobre os progressistas - que também sou eu e talvez você. Ignoramos os sinais da catástrofe? Deixamos para resolver depois? Ela explica:
Estar vivendo o momento histórico nos coloca em uma linha tênue entre a pressa da resolução do problema e a compreensão de como ele se deu. Lidar com o desmoronamento do mundo como conhecemos e também da nossa projeção de mundo não é simples.
A resposta de Paula me levou a uma outra pergunta: “estou negando a dificuldade de lidar com o momento pela ansia de dias melhores?” Essa fica para minha própria terapia.
Privilégio e refresco
Quando repetimos "não se tem um dia de paz neste país", estamos de alguma forma reconhecendo a constante repetição de caos e ao mesmo tempo nosso privilégio. E ainda o fazemos em tom jocoso. Esquecemos que pessoas de baixa renda, principalmente pretas, não têm um dia de paz desde que essa terra era anexo de Portugal. Vislumbres de esperança e períodos com menos fome? Sim. Mas, precisamos reconhecer, a solução da desigualdade social é de longo prazo e ela vem sendo picotada.
Quem está na base da pirâmide - e tem acesso a celular e internet - posta foto de biquíni, encontra felicidade à sua maneira, nunca é servido por ninguém e não tem 24h de paz. A violência para elas é habitual. A jornalista e apresentadora Ana Paula Lisboa escreveu em sua coluna no jornal O Globo, no dia 13 de janeiro:
Domingo foi dia de os surpresos ficaram estarrecidos com os atos terroristas em Brasília. (...) Eu tenho inveja porque, se uma pessoa ainda se surpreende, quer dizer que a casa dela nunca foi invadida, que ela nunca passou por um toque de recolher, que seus filhos nunca foram sequestrados, que suas terras nunca foram ocupadas.
As distrações e negações também estão nestas camadas, é claro. No livro não ficcional Comer, rezar, amar (2006), a autora americana, Liz Gilbert fala de uma amiga psicóloga que vai trabalhar no atendimento de refugiados. A profissional está tensa, pensando em como lidar com os traumas que virão nos atendimentos. Quando ela chega lá, a maior parte da demanda é da vida comum: romances inacabados, traições, promessas de amor e desejo. Parece que, no fim, todos nós viramos o rosto para a realidade e nos agarramos aos refrescos sentimentais para sobreviver.
Uma vida exclusivamente voltada à militância e em estado de alerta não faria bem a ninguém, de fato. Precisamos mesmo de uns dias de sol e caipirinha, pé na areia e coisa e tal, ativar a libido porque sem ela, como disse Renata Corrêa, não se transa e nem se cria e nem se gargalha com gosto. Ninguém merece um cotidiano seco. Mas, será que não tem um jeito de colocar os pés no chão e manter o coração leve?
Retorno a sensatez política-social-mental de Paula para capturar possíveis respostas. Ela traz:
A educação para a liberdade, citando o grande Paulo Freire, exige uma postura de construção do saber fazer que não comporta hierarquias, abusos, totalizações. É um ideal justo e complexo, porque entende que a existência humana é diversa e que todas as vidas importam. (…) Precisamos pensar, coletivamente, como produzir caminhos para a saída desses extremos.
Os riscos existem e cada vez mais se provam palpáveis. Não é necessário nem a paralisa por medo e nem por desdém. Podemos rir e fazer a piada dando o devido valor ao que a realidade nos apresenta e montando planos de contingência. Um pouco de droga, um pouco de salada, como diz o meme.
Vida boa aperriada
Apesar do desejo, os dias de descanso não estão aqui - talvez um pouco mais de paz, não garanto. Ainda que judicialmente os criminosos intervencionistas paguem por seus atos, temos um país inteiro e partido ao meio para reconstruir. E isso dá trabalho, exige negociação - democracia é isso, afinal - e cansa.
Para seguirmos em frente, sem dar trabalho extra ao cardíaco, precisamos ajustar as expectativas e montar nosso kit de vivência. Sugiro, para começar, ter sua rede de amigos e afetos com quem se pode ser vulnerável, manter um tempinho para encontrar a sua solitude (meditar ou rezar ou respirar fundo) e ter contato com a natureza nem que seja na praça do bairro. {Falaremos mais dessas opções no envio do dia 31/01, quando entrevisto o psicólogo Lula de Oliveira, aguarde!}
Não existe mais um mundo seguro porque na verdade ele nunca existiu. Era um disfarce disponível apenas para privilegiados e distraídos - ainda tem quem more nele. Por incrível que pareça, está nisso o otimismo do qual precisamos; o que reconhece os dias de luta sem nos deixar esquecer que a vida continua sendo bonita em meio a confusão.
Não se tem um dia de paz. Ainda assim continuamos amando, sentindo o mar renovar nossa esperança, tomando banho de chuva para lavar a alma, comemorando marquinha de sol, preparando um bolo com afeto, abraçando, conhecendo gente bacana, se afastando de quem não faz sentido, nos emocionando com o pôr do sol, lendo livros encantadores, abrindo um espumante no revéillon, fazendo arte, tendo bebês e rindo de memes. Não está bom?
Leituras complementares:
Uma semana com mais refrescos para nós,
um beijo
Gabi
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Excelente texto!
Valiosa demais a colaboração com a Paula Maria também :)
Acredito (tento e insisto) que a gente precisa conquistar nossa mini paz sempre que der, todo dia fazendo algo por nós e se possível que impacte também o coletivo.
Estamos muito direcionados ao individualismo por uma questão mesmo de sanidade e sobrevivência, aquilo de colocar primeiro a máscara na gente mesmo - e tudo certo. Mas que a gente não perca a visão de que a mini e a mega paz exigem o coletivo sempre. 🌻
Nossa, que texto! Gostei demais 🖤