Não tem expressão melhor para falar do que pode acontecer com nosso cérebro na gravidez do que a inglesa “brain fog”. Desde o começo me senti perambulando por uma grande nuvem espessa, branca, de baixa visibilidade. Uma neblina, tal qual a tradução exata de fog. Nem toda cidade tem esse fenômeno, se nunca o tivesse presenciado nas minhas andanças talvez não alcançasse o significado quando vivesse a sensação cerebral. Isso seria bem ruim porque estar na nebulosidade sem nem conseguir nomear é ainda pior.
Esta condição não é exclusiva de grávidas, foi registrada até em alguns casos de covid longa. Acontece quando o seu corpo entra numa espécie de acordo com o cérebro para o foco maior da sua existência naquela fase ser na sua recuperação em casos de doença ou na formação do bebê no caso da gravidez. Informar aos pacientes sobre a transitoriedade dessa sensação é o único alívio possível de ser dado pelos médicos. Quanto tempo vai levar? Em um padecimento não se sabe. Na gestante, pode findar logo após o parto, mas aí vem a fase sem dormir e o puerpério e a bagunça pode acontecer de novo.
Por aqui, comecei a enxergar menos borrado de novo nas últimas semanas, antes mesmo de parir. O que nos leva de volta a um clássico da medicina: não há respostas concretas para quase nada. Isso muito me irrita. O enjoo, por exemplo, costuma passar até as 16 semanas de gravidez. Mas, pode ir até 20. Também pode ir até o final. E aí ninguém tem como saber qual vai ser seu caso até você estar em um dos quadrantes da estatística. Sim, sigo até o final. Pelo menos meu cérebro decidiu recobrar um pouco da lucidez e me dar um alento.
Passei todos esses meses confusa e só agora consegui entender e aceitar o fog. Meu funcionamento normal é pautado no que consigo fazer intelectualmente. Sou moldada por meus livros, minha escrita, minha comunicação. Tenho também um lado espiritualista, a meditação, a coisa mais mística e isso é importante para mim sim. Mas, a base é a outra parte. Me sinto vazia se não leio nada. E quem escreve se sentindo vazia? Ainda mais com vontade de vomitar? Esse foi meu maior desafio, encontrar um jeito de existir por outras vias. Reclamei muito. Sofri um tanto. Sobrevivi e parece ter sido melhor assim.
Cada vez mais veloz
Minha caixa de e-mails, uma conta voltada apenas para trabalho, está lotada. Todos os não lidos são newsletters que adoraria conseguir ler com calma. Nem sempre dá tempo e, às vezes, quando dá meu cérebro não coopera porque a neblina diminuiu mas não foi embora. Quem assina pelo Substack tem a opção de nem receber textos por essa via, é possível acompanhar no aplicativo. Não gosto, sou das antigas e detesto ler no celular. Por mim, inclusive, usaria um Ipad, o melhor meio termo neste âmbito tecnológico. Chegarei nessa compra um dia.
Apesar da tentação de colocar tudo que vivencio nesse período na gravidez, esta bagunça toda no volume de e-mails não se justifica apenas com meu brain fog. Fiquei sabendo que colegas não gestantes estão vivendo o mesmo. As coisas se acumulam, o tempo da escrita é veloz e não conseguimos alcançar. Há alguns anos, nem são tantos assim, crônica era no jornal e tinha pessoas específicas cada dia da semana. Também havia a expectativa do momento da chegada mensal da revista impressa. Não quero ser nostálgica e pintar o passado de cor de rosa. Tínhamos problemas, mas o tempo não era um deles. Poderia passar trinta dias apreciando cada publicação até o próximo mês.
O lado ruim é que quem escrevia dependia da boa vontade de algum grande nome ou contato para sair nos veículos com qualquer coisa dita. Muitas vezes, nem eram pagos (ainda tem disso, acredite!). Com a internet, o leque se abriu. São muitas plataformas e muitas formas de se comunicar. Áudio, vídeo, texto, meme… Isso dá palco para uma turma sem tanto talento ou sem o discernimento necessário para falar sobre certos temas. Um outro efeito é uma geração inteira, independente da idade, se dando uma importância não factível apenas pelas curtidas nos seus posts. Por outro lado, deu voz a minorias não só para expressar demandas, mas para entregar sua arte.
Não temos controle algum sobre a métrica da qualidade do que circula na internet e nem acho que teremos em algum ano e talvez sequer devamos. Quem dita regra sobre os outros geralmente é apenas chato. Uma exceção são as pessoas competentes com uma carreira construída na crítica artística e com repertório. Nesta profissão nem todos são bons em enxergar além das referências das bolhas. Isso não é novidade, tem gente péssima desde que o mundo é mundo.
Já sobre o volume é possível sim repensar. Meu brain fog serviu para rever o ritmo dos envios desta newsletter. Fui forçada a fazer uma entrega mais sazonal e assim percebi mais espaço para os leitores conseguirem ler e mais aptidão da minha parte em selecionar os temas e escrevê-los. Posso até ser um e-mail não aberto na caixa de alguém, mas garanto que não deve passar de dois ou três.
A gente cansa de ter tanto para consumir mesmo quando tudo é muito bem feito. Ninguém está realmente presente em nada e o número de não lidos ou escutados vai subindo junto com a angústia de não dar conta. Que desespero! A gente só queria um pouco de cultura acessível e caiu em um poço sem fundo de vozes com volumes variados.
Já estava elaborando esta pauta nos confins da minha mente quando abri o Instagram e vi um post do escritor pernambucano Marcelino Freire declarando a verdade sobre a escrita (vale para qualquer ofício criativo) diante de um público ávido por um novo livro seu. “Escrever cansa. Dá trabalho. E acumula. E eu não tenho coisa para dizer nem todo mês. Nem todo ano, pô.”, revela. O detalhe é que o autor tem uma publicação recém chegada às prateleiras.
Até parece que os tais leitores vão conseguir ler o dele e mais outros cem nos próximos meses. Não falta novidade nas livrarias nem arquivos em sebos. Podemos comprar, sou dessas, para ter em mãos no momento ideal. Mas, precisamos estar conscientes de que tudo tem seu tempo. Mesmo a arte e o lazer pedem pausas.
Meu ritmo reduzido me lembrou a importância dos intervalos. O nome desta newsletter não é à toa - Tempo para você - e o tema já me ronda há anos. Não estava me ofertando a possibilidade de fazer menos pelo provável medo de ficar para trás e de ser esquecida diante do volume de produção alheio. Na prática, ninguém tem tanto a falar. Não com a qualidade a qual almejo. Lembrando que para ter repertório e embasamento para tanta entrega, é preciso consumir esse mesmo tanto. Ler, pesquisar, se inteirar e conversar com pessoas reais e não com IA. Não sou fã das certezas e nem combina com a arte. Mas, me permito uma convicção: não existe neste mundo ser humano que saiba de tudo, domine tudo, a ponto de apenas se enclausurar e escrever como se não houvesse amanhã. Cansa quem escreve e cansa quem lê.
Testando outros ritmos
Eu tenho dó do que a gente tem feito nosso corpo e mente passarem nos últimos anos. Uma pressão bizarra para dar conta de uma vida baseada em dar check em listas e pouca coisa sendo de fato absorvida. Não quero fazer parte disso, apesar de, em algum momento, poder ser necessário ceder um pouco em nome da minha carreira. Também não posso garantir que quem anda devagar chega em algum lugar. Já cheguei em alguns neste meu ritmo. Seria irresponsável creditar apenas ao fazer do meu jeito e no meu tempo. Quem sabe o que eu poderia ter conquistado se fosse menos vagarosa? Talvez estivesse ocupando outras cadeiras.
Seja como for, as que consigo sentar hoje são as que puxei andando com passos lentos, porém corajosos e com vontade. Há quem confunda esse ritmo próprio com preguiça e lerdeza. É bom deixar as cartas na mesa. É possível ter ambição sem pressa.

Então, vou aproveitar esta fase da minha vida gestante, meu brain fog e, logo mais, um neném no colo para embarcar nesse jeito mais meu de fazer as coisas nesta newsletter. Preparei alguns textos para enquanto estiver em repouso e vivendo a meu reequilíbrio hormonal e minha filha e vou deixar o envio programado por aqui. Chegará para vocês aos poucos. Se, neste meio tempo, surgir algum tema do qual queira escrever e publicar, venho aqui e o faço. Acredito fortemente que haverá. Escritora vivendo novos contexto sempre dá pano pra manga.
Este tipo de decisão não é fácil. Na gestação uma das minhas maiores angústias foi não ser produtiva como imaginava que seria nesse período. Antes disso, muitas vezes me senti falha por não ter a velocidade de outrens. Mas, outro dia, enquanto minha neblina mental se dissipava, consegui entender que minha pressa é outra e isso meu deu um pouco de paz. Vou em busca do meu caminho, esse que só pode ser percorrido por mim. De preferência sem medo das perdas na estrada até porque seja qual for a seta que a gente escolher seguir, na linha de chegada haverá fracassos e êxitos. Isso se houver essa linha mesmo. Pode ser um looping eterno e se for o caso, meu fôlego agradece pela caminhada devagar.
Até breve.
Uma semana de boas pausas por aí.
Beijos, Gabi
Gabi, quantas boas questões você trouxe. Eventualmente me sinto mal por não conseguir uma regularidade nas postagens, mesmo sabendo que é melhor o silêncio do que o ruído gratuito quando não há nada relevante a dizer.
A sua foto com a neblina ficou linda e poética!
Um beijo em vcs! 😚
Que linda foto! E adorei o texto! Também me senti assim, com essa "neblina", mas foi mais no último mês de gestação (toda a energia desviada pro bebê e vontade de dormir todo o tempo) e durante o puerpério (que senti que durou uns 4 meses). Que sua neném chegue com muita saúde! Estaremos esperando seus textos e, na saudade, leremos os anteriores. Abraço!