O gosto se perdeu. A língua carrega um amargor, uma sensação estranha. Procuro no paladar meu desejo para o almoço. Não encontro. Qual prato iria me fazer feliz agora como já me fez tantas outras vezes algumas iguarias? Não sei. Até os doces estão perdendo palco. Talvez eu precise de uma feijoada. Um cozido pernambucano. O cardápio de Páscoa da minha mãe. É tudo um chute aleatório, com um desses em mãos poderia me sentir plena ou desistir da empreitada. Ando sem graça, sem sal.
Outro dia pedi uma moqueca de camarão em um restaurante carioca baiano, no delivery, e comi feliz. Uma raridade. O apetite no decorrer dos últimos meses tem vivido altos e baixos. No padrão, há um intenso desejo por bolos recheados de chocolate ou de doce de leite. Faço. Não é o ideal na dieta da gravidez. Dizem que estou formando o paladar da criança, mas desconfio que ela é que está formatando o meu ao seu prazer. Me sinto culpada de qualquer jeito. Vejo, no Instagram, grávidas treinando musculação com pesos três vezes maiores do que eu carrego. Elas comem toasts de abacate e tomam frutas batidas com proteína. Tem dias que como isso também, especialmente a tal proteína em pó a qual precisei me render por motivos nutricionais. Estas mulheres também fazem aulas de dança ou correm na rua. Certamente tem mais libido que eu.
Sonho com o dia em que voltarei a frequentar as casas de suco. O Rio é a cidade mais fã desta bebida que conheço. Graças aos perigos da toxoplasmose e afins, pedem à grávida para não comer crus na rua. Nem frutas nem folhas. Os ovos de gema mole, os crudos de atum ou salmão, a carne mal passada não posso nem em casa. Passo na frente do Bibi, na rua da academia a qual frequento, calculando quanto falta para pedir um suco verde ou um açaí sem xarope. Soa patético. Não é.
Trata-se de uma busca pelo prazer. O meu vem - e muito - da comida. Ou vinha. Leio sobre pratos e ingredientes e me lembro como é sentir aquele gosto. Parece ainda haver dentro de mim uma fagulha dessa apreciação. Minhas amigas, minha mãe e minha médica dizem que depois do parto tudo volta ao normal. Não tudo tudo, é claro. O apetite, o estômago e o intestino. Agora estão todos encurralados por um útero expandido.
Em algum momento, provavelmente em maio, vou colocar uma garfada na boca e todo encantamento saudoso estará de volta. Vou sentir o gosto do suco de acerola sem proteína junto. Vou poder ir no Zazá e pedir a salada grega. O vinho parece que ainda vai demorar mais um tanto. Já nos vejo com o carrinho chegando numa mesa externa do Nusa para comer o ovo de gema mole com bacon e abacate. Prevejo as receitas que vou fazer quando minha menina estiver comendo e quais pratos vou apresentar a ela respeitando sua saúde sem deixar de engrandecer nossa cultura alimentar. Quais frutas ela vai preferir? As minhas favoritas ou as do pai?
Não sei porque a biologia faz dessas coisas para gerarmos uma vida. O consenso diz que é sobre prioridades. O corpo precisa focar em garantir o bebê. Os hormônios fazem este trabalho e também mudam todo o sistema de sobrevivência da mulher a serviço dessa produção. Nunca imaginei passar tanto tempo sem terminar um livro e começando vários para abandoná-los em seguida mesmo gostando da leitura. Menos ainda foi cogitado por mim ser a pessoa da mesa enrolando para terminar o prato do almoço.
Tudo isso é estranhamente esquecido a cada chute, mesmo os que pegam minhas costelas. Nunca iremos esquecer o dia do ultrassom em que a vimos formada pela primeira vez. Fomos totalmente despreparados, na outra ida ouvimos o coração e vimos um contorno que a médica disse ser nossa filha. Nesta não. Ela tinha cabeça, braços e perninhas que se mexiam inquietas. Já era uma espoleta e deu trabalho pra ser medida. Risos. Eu e o pai voltamos para casa flutuando. O que era um açaí perto disso? Bem, ainda era muito porque horas depois ainda sofria. E sorria. E sofria.
Penso que certas coisas nos acontecem para nos colocar em posições de mais empatia. Não quero dizer que a ideia do castigo e sofrimento são formas de aprendizado e nem mesmo colocar beleza nisso. Por mim, a biologia passaria por um upgrade e ninguém mais viveria essa confusão gravídica. E eliminaria também comentários do tipo “mas é o maior amor do mundo” ou “mas você está feliz com esta dádiva” etc etc. Estou feliz, amo muito mesmo, mas não por isso me disponho a me apagar sorrindo. Reclamo, esbravejo e choro. É uma chatice. É um novo jeito de existir e, segundo consta, daí vai surgir uma nova eu, ou seja, não estou apagando, estou ressurgindo. Dói. Dito isso, não tendo escolha se não viver essas fases complicadas na vida…
Nesta etapa compreendi melhor as pessoas sem o mesmo apetite que o meu. Sem vontade nem gosto por pratos mais nutritivos e refeições completas. Somos adultos e sabemos das nossas necessidades de saúde, portanto temos de comer certas coisas mesmo sem amar. Ainda assim, entendo melhor o sacrifício, o esforço, a dor de querer um pedaço de torta de limão e terminar com feijão e arroz.
Acessei também os medos de algumas colegas e amigas de engravidar de novo - falando das que já tem filhos - mesmo amando seus rebentos. Não querem viver o imbróglio e a doação de novo. A sensação de estar presa em uma fase com cara de “para sempre”. Mesmo que passe e a gente se adapte. Mas, começar o jogo de novo do zero? Não, obrigada. Antes eu me perguntava como isso era possível, parece antagônico. Não é.
Enquanto este meu processo segue e nossa mini cidadã não chega, criei coragem para tentar fazer o pudim da minha mãe. Nunca me atrevi mesmo cozinhando há mais de uma década. O que a linhagem maternal não faz, né? Com a ajuda do marido para o caramelo não queimar a barriga que já está batendo na beirada do fogão, o doce saiu belíssimo (foto acima) e delicioso. Me fez feliz por um fim de semana. Na Páscoa, será a vez do peixe no molho de coco. É coisa de mãe para mãe mesmo.
Queridos leitores, em abril já estarei nos últimos preparos para a chegada da minha pequena. Quando isso acontecer, os avisarei assim que possível. Há sinais de textos vindo por aqui, parece que irei conseguir deixar algo pronto para ser enviado esporadicamente até meu retorno completo. Pretendo - e não escrevo na pedra porque a vida pós parto é um grande mistério - retornar aos teclados três meses após seu nascimento com envios mensais e aos poucos volto aos semanais. Agradeço o apoio de todo mundo que está aqui em todas as modalidades de assinantes. Se achar por bem, é possível pausar a assinatura paga por uns meses. Se puder permanecer ou ainda aderir, serei grata. É uma fase de muitos conflitos internos: meu eu profissional está se perguntando se irão me esquecer, se perderei quem me lê. Meu materno e pessoal mantém a fé na força da palavra, tudo correrá como tem de ser e ser escritora é meu destino, não há nada que mude isso. Papo longo esse, fica para uma próxima. :) Até breve!
Uma semana mais doce por aí.
Beijos,
Gabi
Como sempre, quantas verdades nesse seu olhar sensível, Gabi. A gravidez é uma fase tão ambígua (assim como a maternidade também). Esses dias conversei com o meu marido que, por mais que seja assim, sou imensamente grata por experienciar tudo também no corpo. Os homens não têm essa possibilidade e percebo como é difícil para eles assimilar todas as mudanças pós-parto. Animada para ouvir de você sobre isso quando a pequena chegar <3 aproveite a reta final. Um beijo!
Estou aqui com 10 semanas e me identifiquei taaanto! Principalmente na parte de ter dificuldade pra ler. É meu hobby favorito, desde que me entendo por gente, e agora não consigo me prender a nenhum livro 😱 obrigada por compartilhar e boa hora pra você! 😊