Livre como um carnaval
Seria bom esse sentimento o ano inteiro, esse que nos liberta para ser e ousar sem medo do julgamento (dos outros e do nosso).
O que queria para hoje era um tal de Carnaval. Não pelo frevo ou pela festa, mas pela liberdade que só ele tem. É nesse tempo de rua, de sorrisos e cores, que a gente usa de fato o que quer, protesta com memes engraçados sem ser com o rosto escondido pela tela do celular, abre o coração para o imprevisível, dança com o corpo solto e até reclama menos.
Não sejamos sonsos, em outras datas não somos os mesmos. Pensamos três vezes quando cogitamos vestir algo diferente. Ou falar o que não é esperado de nós. Já quando chega a folia do Momo toda roupa é roupa com a desculpa da fantasia. Você coloca pra fora todas as suas loucuras, sobe e desce as ladeiras, pula como se não houvesse amanhã, ri de vários perrengues, gruda no confete e na serpentina e suja o cabelo de espuma porque, oras, é Carnaval.
O olhar das outras pessoas pessoas sobre nós muda e vice versa. Quando sua maquiagem está vermelha demais, ninguém te julga. A saia curta é bobeira, a blusa com estampa de bicho não é brega, o sutiã aparecendo é uma graça.
“Vai menina, vai menino, esquece o mundo e usa o que tu quiser.” Devia ser o hino da festa, boa frase para uma marchinha.
Se hoje fosse Carnaval veríamos as mulheres de calça justa, decote generoso e nem aí para o tamanho das suas barrigas e acharíamos belíssimo - e não corajoso ou sedutor demais - assim como quando estamos no baile do I love cafusú (menção honrosa a esta festa que ocorria no Recife no início dos anos 2010) ou qualquer festinha brega hype. E não, ainda não somos livres a este ponto e ainda julgamos muito. Mesmo sendo feminista, verdade seja dita, nos diferenciamos de outras através do que vemos como ruim, seja isso uma roupa conservadora ou não.
Por essas e outras, todo mundo ficaria mais feliz se fosse Carnaval todo dia; a gente tiraria as amarras, os conceitos e preconceitos, o certo e errado, o veredicto. Não seria muito mais bonito?! O fim da alegria contida, da vergonha e do “deixa pra lá, vou usar bege”. Aliás, tem coisa mais sem graça que usar sempre bege? Quantas pessoas "nude" não devem pensar em variar a cor e desistem porque não é dia de bloco?
Talvez a solução deste país seja ser Carnaval para sempre. Se a gente consegue essas proezas da liberdade de ser em uma determinada semana de fevereiro, às vezes março, me soa como se já tivéssemos encontrado a saída. Se decreta um estado de sítio ao contrário e sem previsão de fim. Quem não é de rua, não seria obrigado obviamente. A festa carnavalesca tem o dom, além de todo o resto citado, de espalhar uma vibração única e bate mesmo nos que estão sentados em uma poltrona assistindo um filme de Sofia Coppola.
Nem que seja pelo menos por mais um dia, fica mais um pouco, Carnaval.
Nota da autora: este texto foi publicado originalmente em fevereiro de 2012, quando eu escrevia sobre moda e comportamento {o que não deixa de ser um pouco do que faço hoje também}. Lembrei dele, repaginei com referências mais atuais e outros tributos. Deixei alguns trechos que são típicos do Carnaval de Recife e Olinda, claramente minha saudade doída de fevereiro. Esses apegos, eu sei, soam estranho para quem não é daquela terra. É difícil não sentir falta de um lugar que festeja basicamente tudo. Descobri depois de saída, é um lugar que não rejeita a chance de celebrar e esse texto diz muito sobre isso. Carnaval, Natal, Revéillon, São João, início de verão, Páscoa… Não é sobre fuga de trabalho. É sobre saber viver.
A música tinha de ser dançante hoje. “Ela vai dançar a noite inteira, ela vai cantar todas as músicas, pra desfazer, pra desfazer a dor e refazê-la".
Clube Tempo para você
O tema deste mês no clube é liberdade. Combina bem com a crônica de hoje, né? E nem foi de propósito, a palavra está mesmo na minha cabeça.
Na leitura, vamos ter o livro Eu, Tituba: bruxa negra de Salem, da caribenha Maryse Condé. O livro foi lançado em 1986 e reconta de forma ficcional a história do julgamento das bruxas de Salem, em especial, de Tituba. Uma obra premiadíssima que mostra a coragem da escritora em dar voz às mulheres negras. Isso ainda é raro hoje, imagine naquela época. Maryse ganhou, com o título, o Grande Prêmio da França de literatura feminina no ano de 1986, o Grande Prêmio dos Jovens Leitores, da França, em 1994 e também o New Academy Prize (Prêmio Nobel Alternativo) em 2018.
O livro é narrado em primeira pessoa por Tituba, uma das mulheres envolvidas nos julgamentos das "bruxas" no século XVII. Ambientada, principalmente, na província americana de Massachussets, em Salem e Boston. Mas também percorre Barbados e a Inglaterra. (aviso de antemão, caso não curta spoiler, pule o prefácio e leia depois!)
O jornal Boston Sunday Globe, quando o livro saiu em inglês, publicou: "Impressionante... A subversão imaginativa de Maryse Conde dos registros históricos forma uma crítica da sociedade americana contemporânea e seu racismo e sexismo arraigados".
Você pode ler aqui uma resenha apaixonante sobre o livro no perfil Book.ster, do Pedro Pacífico (por sinal, ótimo para seguir e saber dicas de leituras diversas):
O filme será o belíssimo Gloria Bell (2019), com a atriz Julianne Moore. Mesmo que você nunca tenha passado por um divórcio, com certeza vai se identificar com Gloria em alguma cena. Ela é uma mulher comum que vive a angústia de cuidar de todo mundo, em um cotidiano padrão, lidando com problemas dos filhos e conhecidos, e está separada há uma década. Mas, não fica por aí. A personagem surpreende. Ama dançar e vai sozinha para as baladas de Los Angeles, onde mora, apenas para se soltar na pista. Sabe viver.
O enredo tem Gloria tentando se reencontrar, amando de novo e onde isso vai dar quando se é uma mulher adulta com a vida meio organizada. Vale muito ver e se inspirar.
A produção é uma refilmagem de um filme chileno chamado Gloria (2013). A atriz Julianne Moore assistiu por causa de uma recomendação de terceiros e quis fazer uma versão já que o papel principal era de uma mulher de meia idade, perfeito para ela e raridade nos estúdios americanos, conhecidos por escantear as atrizes quando completam determinada idade. Seja em qual versão for, é vibrante e inspirador.
Os assinantes premium participam do clube e da conversa, ao vivo, através do Zoom, e recebem um e-mail caprichado no dia do encontro com uma pesquisa sobre o tema e as obras, relacionando os fatos, além de links para o que achei interessante. Nosso encontro de março será dia 26/03, às 16h. Quer participar? Basta fazer o upgrade da assinatura! Nosso grupo é divertido, com gente fina e elegante haha.
"Ler livros de ficção aumenta a empatia e a inteligência emocional e que de acordo com estudos recentes, pessoas que lêem romances têm uma visão de mundo mais complexa", trecho do artigo "Why we should all be reading more fiction" {Por que nós deveríamos estar lendo mais ficção}, do Financial Times
Daqui a pouco é o Dia Internacional da Mulher (08/03) e o tema de março ser liberdade na ficção - não tão ficção assim - de duas mulheres não foi à toa. Para ler mais sobre o que penso do feminismo, de ser mulher e das nossas questões, indico estas publicações:
Certamente, postarei sobre o dia no Instagram. Sigam aqui, caso queiram me acompanhar.
Uma semana sem julgamentos para nós, nem sobre a gente nem sobre os outros. Mulheres, queridas, vocês são maioria aqui, agradeço imensamente o apoio e a troca.
Um beijo,
Gabi
Que o brilho dos paetes possa alegrar nossos dias comuns como no Carnaval. Vamos nos vestir e nos comportar parar viver a festa possível. Beijo
Tudo tão tão verdade.... e tão atual, mesmo 10 anos depois da data do seu texto original...