Meu drink de verão é o Aperol Spritz. Outra opção, se houver com quem dividir, é o clericot com frutas bem coloridas; preciso da partilha porque geralmente é servido em jarra. Depois de uma certa idade é de bom tom saber o que e o quanto tomar para não querer morrer no dia seguinte. A não ser que o desejo seja desvairar o que também cai bem de tempos em tempos depois de uma certa idade. Bem, se você não sabe, a tal bebida chega até você em uma taça alta com tons cor de laranja - próprio do Aperol -, borbulhas - próprias do espumante - e uma rodela de laranja bahia. Tem quem dê um toque com um raminho de alecrim. O sabor, quando bem feito, é meio amargo meio doce.
Estava tomando um desses numa noite quente com brisa fresca como é comum no Nordeste enquanto ouvia o cantor do bar cantar clássicos no violão. Dada minha certa idade, eu sabia cantar todas e assim o fiz bem baixinho para não atrapalhar. Sabe como é? Espero que saiba, é uma ótima experiência. Entre cantoroladas tímidas, respondia aos vendedores autônomos que passavam de mesa em mesa. Todos podiam entrar nos restaurantes livremente como é de costume em um vilarejo onde os habitantes dependem do turismo.
Trufas, chocolates, tapetes, flores de palhinha… Nas mesas ao meu redor tinha menos diversidade do que a variedade naqueles cestos. Estava programado ao menos quatro casamentos naquela semana em Trancoso, segundo o motorista que nos levou do aeroporto para a pousada. Boa parte dos frequentadores dos bares e restaurantes eram também convidados dessas festas cujos cardápios seguiam um padrão bem distante das tradições baianas. Eles, os visitantes, eram todos bem parecidos e poderiam estar facilmente em uma imagem dos trabalhadores da Faria Lima ou de alguma reunião do agro, especialmente se esta fosse no dia 07 de setembro.
Meu Aperol também poderia estar nessas imagens, mas não sei se ele está em alta. Acho que agora é a vez do gin tônica (é isso mesmo?). Este drink já não posso tomar, não desceu bem na minha certa idade. Graças a isso e outras coisitas mais, felizmente, não tenho cacife para figurar nas fotos deles.
Piadas a parte… Cantarolava no bar, quando chegou uma criança vendendo quitutes para ajudar a pagar sua escola. Meu coração se despedaçou em mil olhando para aquele menino tão doce sem os direitos garantidos pelo estado. Ele olhou para mim e para minha taça e falou: olha, combina com sua roupa. Eu usava uma blusa laranja nesse dia e não tinha notado a coincidência. Dei um sorriso e confirmei. Nessa hora, ele me disse: você é muito bonita. Foi tão genuíno, tão raro de ver por aí, que fiquei desconcertada.
No outro dia o vi de novo. Devia estar com frio porque usava um blazer duas vezes o seu tamanho. Isso me fez pensar que havia uma mãe naquela história dizendo: hoje está fazendo sereno, use um casaco. Numa das mesas que parou tinha dois casais que conversavam sobre o uso de armas por cidadãos comuns em tom de aprovação. Depois de mil perguntas feitas, pagaram por seus doces, mas não quiseram a mercadoria, só queriam ajudar. Convidaram ele para sentar e meu coração apertou nessa hora. Ele não tinha idade para saber a hora de sair dos tentáculos de quem faz caridade "desde que" enquanto consome copos e copos de drinks. Quis protegê-lo de toda maldade do mundo. Como não podia, sugeri ao meu marido que voltássemos para a pousada; não dei conta de assistir a cena.
Eu, com meu drink ideal para minha idade e as mãos atadas, voltei das férias me sentindo um tanto confusa sobre o significado dessa viagem para mim. A certeza é que ao menos tenho cacife para as fotos certas. Obrigada pela aprovação, menino.
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Tem quem ache Legião Urbana cafona, não é meu caso, acho isso ótimo e nem sou de Brasília. Risos. Ouvia a banda quando era uma jovem menina junto com meus pais e na fase adulta, meu marido - na época era namorado - tocou guitarra numa banda e eles cantavam Legião. Eu amava. {sim, já fomos habitués das noites recifenses carregando instrumentos no banco de trás e na mala do carro}. Lá nas férias, em Trancoso, o cantor do bar tocou algumas músicas deles e as letras, meu caros, seguem atuais. Renato Russo traduziu muito bem o brasileiro:
Quem me dera, ao menos uma vez/ Provar que quem tem mais do que precisa ter/ Quase sempre se convence que não tem o bastante/ Fala demais por não ter nada a dizer
Quem me dera, ao menos uma vez/ Que o mais simples fosse visto como o mais importante/ Mas nos deram espelhos/ E vimos um mundo doente (Índios, 1986).
Outra letra que achei útil partilhar:
Ei menino branco o que é que você faz aqui/ Subindo o morro pra tentar se divertir/ Mas já disse que não tem/ E você ainda quer mais/ Por que você não me deixa em paz? (…)
Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel/ Ô, ô Sempre mais do mesmo/ Não era isso que você queria ouvir?/ Bondade sua me explicar com tanta determinação/ Exatamente o que eu sinto, como penso e como sou (Mais do mesmo, 1987, ouça aqui)
Uma semana com cor e sabor de laranja bahia para nós.
Um beijo,
Gabi
Amei o texto. Nossa, eu também me sinto muito mal vendo a caridade de quem detesta aquilo ali. Minha mãe chamava essa laranja de "laranja de umbigo". Ela é maior e mais docinha, né? beijos!
Eu amo Legião sem um pingo de ironia e as letras seguem muito atuais! Nos deram espelhos, e vimos um mundo doente.