A vida não é o que se viveu, mas sim o que se lembra, e como se lembra de contar isso, Gabriel García Márquez
Um apartamento de poucos metros quadrados ocupado por móveis não compatíveis com o espaço e por uma família com quatro integrantes: meus pais, eu e minha pequena irmã, seis anos a menos que eu. Nossa diferença de idade sempre é repetida por mim quando falo em nós, como uma demarcação de uma distância difícil na infância. Hoje já nem é tão sentida, ainda assim repito: ela é seis anos mais nova. Na sala daquele apartamento, eu e ela, apelidada de pingo de gente por mim, assistimos inúmeras coisas na televisão de tubo, não havia essas telas fininhas lançadas na última década.
Ela e meu pai gostavam de programas de mistérios e detetives. Boa parte provavelmente não seria adequada para a idade dela. Há uma grande chance da minha mãe ter reclamado desse tipo de conteúdo compartilhado pelos dois. Não havia jeito, já era o gosto da menina com três ou quatro anos. Nem a abalava. Eu, se ouvisse qualquer historieta com ETs - tema muito recorrente nos anos 1990 - ou sequestros, tinha pesadelos por dias. Nosso encontro, meu e dele, era em outro tema: culinária. Não lembro se na época já chamávamos de gastronomia.
Assistimos Jamie Oliver, o chef britânico, quando era um jovenzinho, comandar um programa gravado numa mini cozinha de Londres. Outra britânica, a Nigella Lawson, também era sucesso entre nós e ela cozinhava na própria casa. Se não me falhe a memória, Lawson tem ascendência italiana e isso deixava tudo mais delicioso porque a apresentadora degustava seus pratos com desejo e alegria. Naquela fase esse tipo de entretenimento era mais comum com os estrangeiros no comando e só era consumido via TV a cabo. A casa era pequena, mas tínhamos pequenos luxos como esses.
Meus pais queriam trazer uma cultura mais variada para a família. Por isso, gastavam com o que muitos achavam errado. Os tais canais a cabo, viagens, livros e filmes na locadora onde a fita ainda era cassete. O certo, dentro dos costumes tradicionais, era investir em casas e carros. Mas, na TV aberta brasileira, a culinária era tratada como tarefa para as donas de casa e, por isso, estava na programação matutina ou logo após o almoço. Eu assistia Ana Maria Braga depois da escola porque o gosto da minha versão menina já era sobre cozinhar. Meu pai gostava do meu gosto porque também era o dele e não queria que eu crescesse achando que isso fosse um interesse só de mulheres ou da vida doméstica. Comida também era lazer na nossa casa, ainda é.
Nos fins de semana, à noite, costumeiramente quente, ele lia para nós duas histórias sobre a história. risos Isso aconteceu quando ele cursava História e nossa casa tinha muitos livros relativos a sua graduação e também sobre Geografia, a escolha da minha mãe. Então, ouvíamos sobre o Império Greco-romano na infância. Não era nada mandatório ou sobre ter boas notas na escola. Aquele momento era para partilha de curiosidades, ele é atento aos detalhes cotidianos, assim como eu, e falava não só das batalhas como dos costumes do período. Quem costumava ler antes da gente dormir era ela, já que ele estudava à noite. Mas, quando meu pai podia fazer esse papel, a gente adorava - nada contra você, mãe - porque cada personagem teria uma voz diferente. Ríamos tanto com as piadinhas da Turma da Mônica quanto com a interpretação.
Nas viagens em família, eu era a dupla da minha mãe. Somos duas andarilhas. Ela encontrava algo para fazer pela rua e eu ia junto. Às vezes íamos ao teatro só nós duas. Os tais seis anos a menos da minha irmã fazia com que eu pudesse ir para peças das quais ela não poderia entrar. Meu pai e ela não achavam nada ruim. Os dois encontravam outras atividades, geralmente curtir o hotel com livros e jornais nas mãos. Sim, a pequena começou a ler aos três anos e podia ser ótima companhia no lazer da leitura. Quando o passeio envolvia os quatro, minha mãe ía falando sobre as espécies das árvores, das rochas, os tipos de nuvens e climas. Até hoje sei reconhecer as araucárias.
Além disso, havia os livros. Os que iam na mala e os que voltavam como item adquirido no local visitado. Não é à toa que mantemos livrarias como parte do roteiro de qualquer viagem. De vez em quando, cinema também. Foram incontáveis as vezes em que quando estávamos em cidades com cinema, meus pais inventaram de ir como se fosse um passeio comum no universo turístico. Quando eu contava para minhas amigas, na volta das férias, e elas reagiam com estranheza, tinha mais certeza de estar numa família esquisita.
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