Está sofrido por aí?!
É normal se sentir triste, é honroso respeitar sua dor e é um alívio saber que ela vai embora
Já estava decidida a escrever sobre a tristeza e a angústia dos nossos tempos quando empaquei tentando encontrar o caminho mais acertado para tratar disso com delicadeza. Seria melhor esperar tudo se apaziguar dentro de mim? Enquanto esperava a resposta - já me sentindo em atraso -, uma amiga entrava em trabalho de parto e sentia dores as quais ela reconhecia, pois era o seu segundo bebê. Este, no entanto, mostrou que a experiência não determina nada, era um novo ser e tudo seria diferente. Tão diferente que ela pariu no carro a caminho da maternidade.
Essa história digna de roteiro de filme - ainda tinha o fato do sexo do bebê ser descoberto à moda antiga - me deixou em êxtase. Em um carro, sem estrutura alguma, esta mulher recebeu sua filha - era uma menina - e o pano que a enrolou foi a camisa do pai. Me fez pensar que a vida se impõe, não importa as condições e nem a nossa ridícula tentativa de controle. Foi nessa situação de plena consciência da impermanência que minha esperança aqueceu e garantiu espaço para que este texto saísse.
Imagem meramente ilustrativa. Foto: Marcel Fagin
Não sei quanto tempo vai durar esse sentimento que me impulsiona, me contento com as doses de felicidade que me tem sido concedidas. Nos últimos dias variei entre "vai dar tudo certo" e lágrimas descendo pelo rosto ao ouvir uma música que fazia meu estômago esfriar ou ler uma notícia desagradável. Ri com seriados e depois não consegui me concentrar em episódios devido a tensão. Conversei com amigos virtualmente e se lermos as mensagens trocadas no futuro, será notável nossa flutuação emocional. Também conversei pessoalmente, essas exigirão da nossa memória algum dia.
Estamos nos entremeios; um estado em que a angústia é tão densa que quase podemos tocá-la e as certezas são tão frágeis que passam como poeira fina, coçam nossos olhos sem nem a avistarmos com nitidez. A sensação não é exatamente novidade e parece dramática. Há até uma crítica literária e mercadológica sobre como os millennials - pessoas entre 27 e 42 anos, em média - se tornaram uma legião de reclamões. Motivo para lamentos, queiram ou não valorizar, não falta. "Essa geração se deparou com grandes recessões, como a que se arrastou pelo mundo após a crise financeira de 2008 a 2009 e, no Brasil, com o período de contração econômica iniciado em 2014 e agora agravado pela pandemia.", escreve Paula Adamo na matéria "O que deu errado com os millennials, geração que foi de ambiciosa a 'azarada'", publicada na BBC News.
Discordo de quem busca explicar o sentimento de uma geração inteira de forma rasa, ou seja, como meros mimados.
Expectativa x realidade
Os últimos anos antes da pandemia foram de constante evolução tecnológica ao alcance das nossas mãos. O computador, nos anos 1990, era um objeto exclusivo de escritórios e em menos de 20 anos conseguiu adentrar em lares do mundo inteiro e depois se transformar em um aparelho que cabe na palma da nossa mão no formato celular e tablet. Ao invés de enciclopédias enormes, adquirimos o CD-rom nos anos 2000 e menos de dez anos depois, partimos para o mestre Google. Isso e mais outros mil acontecimentos históricos de cotidiano que passam despercebidos têm grandes impactos. Um deles foi nos dar uma bela massagem no ego.
Imagem do Google para nos lembrar os tempos do disquete.
Não falo só dos millennials. Acredito que as mudanças geracionais interferem na cultura como um todo e causam novos comportamentos até nos idosos. Minha avó usa celular, tem Facebook e Whatsapp e dialoga muito bem de forma digital. Minha mãe aprendeu a usar o computador nos cursos de informática de outrora (se você for muito jovem não saberá do que se trata, mas existiu!) e hoje usa naturalmente para trabalho e para se informar. São exemplos pessoais, mas que representam as características da sociedade atual. Os não tão jovens assim, como eu, acompanharam toda essa transformação e acreditaram mesmo que não teríamos mais repetição de grandes problemas. No entanto, como disse a escritora Ana Rusche, em uma entrevista: nenhum direito está garantido.
Sabíamos que era preciso cuidar do meio ambiente e melhorar a vida de minorias. O erro foi acreditar que outros assuntos estavam resolvidos apenas porque tivemos mais acesso à educação e tecnologia. A realidade veio a galope, não só nas crises econômicas, como nas de saúde, política, moral e legislativa.
Ainda tem louça para lavar
Lembro que quando a Rússia, especificamente a voz de Vladimir Putin, declarou guerra à Ucrânia, em fevereiro de 2022, formadores de opinião recuperaram uma frase do escritor Franz Kafka no Diários: 1909-1923 (publicado em 1945), para representar nossa situação:
“A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar”.
2 de agosto de 1914
Estávamos no final de um pico de casos de covid-19 devido a variante Ômicron e de casos de gripe com a violenta H3N2, já exaustos de tantos problemas. Ainda assim, a esperança estava acesa devido às vacinas. A guerra anunciada foi literalmente uma bomba. Mas, a vida não quer saber das nossas condições mentais; ela se impõe, lembra? Não só para o nascimento de bebês, como para rotinas, tarefas, trabalho. O tempo segue seu curso, a aula de natação segue na agenda, a louça segue juntando na pia.
Na tragédia, ainda é preciso comer e ainda iremos rir. Foto: Jimmy Dean.
No livro Belo mundo, onde você está (2021), da autora irlandesa Sally Rooney, conhecida por retratar muitíssimo bem nossa geração nos seus romances de ficção, tem o seguinte trecho:
"Fui à lojinha hoje comprar alguma coisa para almoçar, e de repente tive uma sensação estranhíssima - uma consciência espontânea da improbabilidade desta vida. Quer dizer, pensei em todo o resto da população humana - da qual a maioria vive no que você e eu consideramos uma pobreza abjeta - que nunca viu ou entrou em uma loja dessas. E isso, isso, é o que o trabalho deles sustenta. (...) Ainda tenho que comprar meu almoço."
A página inteira desta conversa caberia aqui, me contive em nome do bom texto.
Cena de Meia noite em Paris. Filme ótimo, por sinal.
O retrato das duas citações me fez imaginar Kafka e Sally se encontrando para um café em alguma dimensão paralela, como no filme Meia noite em Paris (2022, dir Woody Allen) em que o personagem Gil Pender "viaja no tempo" e consegue dialogar com Hemingway e outros grandes nomes das artes. Talvez pudessem trocar ideias sobre como seguir vivendo uma vida em certo ponto ordinária diante de fatos extraordinários. Ele, pelo que soa na sua biografia, se entrega ao banal. Vai nadar, transar (grande frequentador de bordéis), encontrar amigos, perder a fome. Ainda jovem, adoece e a falta de alimentos o faz piorar, falece aos 40 anos.
Ela, exceto pelos bordéis e pela perda de apetite, deve fazer o mesmo que ele, vive. Mas, Sally tem o que talvez seja o grande trunfo dos millennials, sabe o que é e o que fazer para ter saúde mental. Mesmo com toda muvuca midiática, ela não se rende. Resguarda sua energia, suas palavras e suas tarefas corriqueiras. Talvez chore de tristeza lavando a louça para em seguida comemorar uma boa notícia de uma amiga ao telefone, como eu fiz quando soube do parto da minha no carro.
Mudança também é na suavidade
A cada boa nova, incluindo as grandiosas como o Nobel de Literatura para Annie Ernaux, crio a expectativa, sempre ela, de que dali em diante tudo correrá para a paz mundial. Não dura nem 48h dado que as notícias flutuam tanto quanto nossas emoções todo o tempo. Imagino que por aí também não, já que todos os perfis públicos de redes sociais partilham alguma tristeza nas entrelinhas das suas palavras.
Os memes que nos divertem contando nossa tristeza
Nessa geração, havia, ou ainda há, uma sensação de que na iminência de uma tragédia, o cotidiano mudaria. Talvez estejamos esperando isso para então nos mover. Não ocorrerá tal coisa. Mudanças, boas e ruins, acontecem nas sutilezas. O sucesso, pessoal e coletivo, depende de muitas arestas que estão fora do nosso controle.
"A questão da possibilidade, tão necessária ao sucesso, não vem apenas de nós ou dos nossos pais. Ela surge também da época em que vivemos: das oportunidades específicas que nosso local particular na história nos apresenta.", Malcolm Gladwell no maravilhoso livro Fora de série: Descubra por que algumas pessoas têm sucesso e outras não (2008).
Por isso, a meritocracia é falha.
Adeus, goodbye, so long, verywell
Não sei por hoje termos a consciência da saúde mental, como já citei, ou se por uma ação neurológica para nos manter vivos, reconhecemos os problemas e dilemas, reclamamos, sofremos, mas de alguma forma colocamos parcelas de amor, resiliência e esperança na rotina. Invariavelmente, nas minhas caixas de conversa ou nas trocas presenciais, terminamos os assuntos enviando figurinhas para risos e dizendo: vai passar OU vamos comemorar em breve.
A minha gente sofrida/ Despediu-se da dor/ Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor.
A banda, Chico Buarque
Então, este mês será mesmo difícil e ansioso - inclusive para quem pensa diferente de nós -, exigirá mais autocuidado, resguardo, respiro e exercício. A gente vai chorar e ao mesmo tempo comprar o almoço normalmente. Algumas notícias boas chegarão e nossos corações irão aquecer na esperança pelos dias bons. Outras serão ruins e nosso medo falará mais alto.
O ciclo seguirá seu curso e a tristeza irá embora. Outubro terminará para uma nova história começar, assim como termina uma gestação para fazer uma outra vida nascer.
Um abraço e mais uma vez desculpas pelo atraso do texto da semana. Tudo a seu tempo.
Gabi
ai, que encontro maravilhoso seria esse entre Kafka e Rooney <3
adorei a edição!!!
Esse texto chegou em boa hora aqui. Tá sofrido, mas a gente toca a vida igual. Os suecos tem uma palavra para descrever um estado de humor que é exatamente isso, "svärmod". Geralmente traduzem como estado de melancolia, mas não é isso. É meio como vc disse, lavar a louça chorando e logo depois mandar parabéns pra amiga que recém pariu.
Boa semana pra vc :) Obrigada pelas palavras.