É possível ser feminina e feminista?
Sobre as falácias que andam espalhando sobre o feminismo e o que é a realidade da mulher brasileira
Quando eu tinha em torno de 10 anos e minha irmã 4, tivemos uma babá que claramente sofria agressões do seu então marido. Lúcia* chegava a ter marcas arroxeadas no corpo e às vezes faltava sem explicação. Apesar da minha pouca idade, lembro da feição da minha mãe preocupada e sem saber como agir diante da situação. Ela tentava cuidar de Lúcia*, mas não obtinha muito sucesso, pois pouco tempo depois, pediu demissão alegando não precisar mais do trabalho. Sabíamos o real porquê e não podíamos fazer nada.
Lembrei dessa história esses dias ao ver o feminismo ser tratado como seita destruidora de lares por influencers midiáticas - isso mesmo, mulheres informando mal sobre o movimento que nos deu a liberdade de ter um perfil público como trabalho. Algumas falam de forma direta e outras na sutileza, ou seja atingem diversos públicos. Não vou citar ou mostrar @ para não dar engajamento extra.

O ano em que Lúcia* trabalhou na nossa casa foi 1998. Ainda não havia a Lei Maria da Penha, criada apenas em 2006, e portanto não havia proteção às mulheres que denunciavam violência doméstica. Na verdade, quem o fazia era no mínimo humilhada na delegacia. Maria da Penha é A mulher, farmacêutica, que transformou a legislação brasileira depois do seu então marido tentar matá-la e a deixar paraplégica. O crime aconteceu em 1983 e a condenação ocorreu mais de 20 anos depois. Algumas dessas influencers chegaram a publicar nos seus perfis de Instagram que toda a história era uma farsa a fim de certificar que o feminismo usa mentiras para nos convencer a odiar homens.
Aproveito a deixa para explicar que o feminismo não é uma prática de superioridade de gênero. "Ser feminista significa acreditar que toda mulher deveria poder ter voz própria e buscar a realização de seu potencial.", Melinda Gates, cientista da computação e filantropa, no seu livro O momento de voar (2019). O pedido é apenas sobre equidade: salários iguais, direitos iguais, respeito igual. Por algum tempo achei absurdo ter de explicar o significado da palavra e do movimento em si, até que percebi uma falha.

Há alguns anos, ouvi da Ale Garattoni em um curso sobre produção de conteúdo que nada é óbvio. Não era um discurso político, Ale não tem nada a ver com meu opinativo de hoje. Uso essa frase para reconhecer um erro geracional e educacional: não ensinamos o óbvio. E aí as pessoas não sabem nada, além de confabulações, sobre proteção de minorias nem o que é ou não fake news e nem se um conteúdo de um/a influencer que decidiu se autointitular referência é realmente valioso.
Feminismo seletivo
Todas as mulheres que citei até este ponto são brancas e isso é um apontamento relevante. As demandas e discussões levantadas pelo sexo feminino são tratadas como bobas há muitos séculos, temos provas disso até na literatura e na arte. Livros escritos por elas eram, e ainda são para muitos, considerados banais e não inteligentes; inúmeros foram publicados com pseudônimo para serem aceitos. Sendo assim, nem precisamos nos esforçar para saber como as necessidades das mulheres negras são vistas.
No Brasil, os escravizados foram libertados apenas em 1888 com a Lei Áurea - há apenas 138 anos, o que seria em média 3 gerações para trás. Ou seja, bisavós ou tataravós de pessoas modernas foram vítimas, incluindo os meus. Antes da Lei, nenhuma pessoa negra tinha voz ou direitos - as mulheres, especificamente, eram constantemente abusadas, o que deu origem à miscigenação racial. Mesmo com a liberdade em mãos, elas existiam, mas não eram vistas como cidadãs e portanto não tinham direito a nada ofertado pelo poder público.
"Quem está no grupo privilegiado tem grande dificuldade de ouvir. Para que o diálogo seja possível, essas pessoas precisam se colocar no lugar de escuta", explica a filósofa e escritora Djamila Ribeiro. Um grande erro e fracasso do feminismo, hoje reconhecido e não necessariamente ajustado em todas as arestas, foi ignorar as necessidades das mulheres não brancas. Isso sim é uma pauta a ser corrigida. O movimento não é perfeito, assim como nenhum outro. No decorrer do seu crescimento e dos debates promovidos, vai sendo aprimorado, assim como todos os outros que buscam melhorias neste mundo.
Momento dados
Enquanto as influencers especulam sobre a maldade do feminismo, o Brasil segue acumulando dados cruéis para a vida das mulheres. A cada 7 horas, uma mulher é morta, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Quase metade dos lares brasileiros são sustentados pelo gênero feminino, de acordo com o Ipea. O detalhe é que elas ganham 20,5% a menos que os homens e, além do trabalho remunerado, ainda exercem atividades domésticas e familiares.
A mulher negra é a maior vítima da desigualdade, como esperado dado a história da escravidão. Entre pessoas com títulos de graduação na universidade, as negras recebem um salário 159% menor do que um homem branco. Também estão atrás de homens pardos e pretos e de mulheres brancas. São, em suma, o fim da fila. Dos dados sobre violência feminina já citados, 62% das vítimas de feminicídio são negras e se contarmos os outros tipos de assassinatos violentos, passam de 70%.

São apenas alguns números para nos ajudar a enxergar o abismo entre os gêneros e raças na sociedade brasileira. Portanto, quando falamos em feminismo não é sobre ser contra sua amiga fazer gentilezas a seu parceiro. É sobre defender uma outra amiga que decide exigir o salário equivalente ao dos colegas homens. É sobre a mulher que te presta serviço poder denunciar seu agressor e ter sua vida assegurada. É para que uma mulher negra ocupe cadeiras de cargos de alta patente.
Ser mulher
Há um medo de que defender o feminismo seja equivalente a abrir mão de ser feminina - um conceito que precisamos reaprender, afinal o que é ser feminina e o que foi dito que é? - e não é isso. Continuo fazendo bolo toda sexta-feira, adoro meus vestidos, recebo amigos em casa com mesa bonita e já questionei se tudo isso é efeito da cultura ou se sou eu mesmo. Entendi que é coisa minha. Tenho aptidões domésticas e isso não é demérito. Não importa as minhas habilidades, sigo defendendo os direitos e a liberdade das mulheres fazerem suas escolhas.
“Quando estou com as pessoas certas, eu me sinto forte, poderosa e sexy", livro Fome da Roxane Gay
O meu desejo é que a gente possa amar, ser amada, trabalhar, partilhar a vida, andar livremente pelas ruas, dançar junto sem o coração apertar por medo do risco. O simples direito de fazer qualquer uma dessas coisas de forma relaxada. É pedir demais?
Hoje, os links são para aprendermos mais sobre mulheres e o feminino. Busquem informação de estudiosas, cientistas, pesquisadoras, gente com bagagem. Não se deixem inebriar pela fala forte de quem abre a câmera do Instagram para destilar terceiras intenções. Separemos o joio do trigo.
Os dois livros citados estão com links para compra. São valiosíssimos. As autoras não estão com bandeiras políticas hasteadas e não levantam polêmicas que possam causar sentimento de não pertencimento nos leitores. Recomendo muito.
"Em um mundo cheio de princesas, ouse ser um cachorro-quente. (...) Nosso eu autêntico, imperfeito, deliciosamente confuso é, na verdade, a própria definição da perfeição.", Reshma Saujani, advogada e política americana com descendência indiana, no livro Corajosa sim, perfeita não, também uma boa leitura sobre o tema.
Esta imagem compara uma praia islâmica nos anos 1970 e 2014. Uma forma de enxergarmos que tudo pode mudar em um piscar de olhos.
Livro didático e pequenino para entender feminismo. A autora é Chimamanda Ngozi Adichie e foi ela que fez a palestra O perigo da história única no TED. Vale a pena assistir aqui.
Leia mulheres contemporâneas e de outros tempos, assim podemos perceber tudo que elas passaram para que hoje, ainda que com itens a resolver, tenhamos mais liberdade. Recomendo as brasileiras Conceição Evaristo, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Jarid Arraes, Nara Vidal, Aline Bei, Mariana Carrara, Socorro Acioli… são muitas. Mundo a fora: Joan Didion, a Nobel deste ano Annie Ernaux, Virginia Woolf, Bell Hooks, Jane Austen, Elena Ferrante.
Sobre o feminismo negro, a brasileira que merece todos os louvores: Djamila Ribeiro e sua obra Quem tem medo do feminismo negro?
O Clube de Leituras Feministas da Juliana Diniz, doutora em Direito do Estado (USP) e professora da Universidade Federal do Ceará, é uma boa ideia para ampliar o repertório em conjunto e com guia qualificada.
Feminismo é um assunto com muitas vertentes e subtemas, suficientes para uma tese. Com certeza deixei passar algo relevante. Comentem o que ficou de fora e é relevante.
Um abraço e até segunda que vem,
Gabi
*nome trocado para preservar a identidade da pessoa.
ps: todas as imagens de conteúdo machista foram extraídas de perfis diversos do Instagram. Não trouxe o link para o @ para não aumentar o número de cliques na página e assim disseminar o perfil. Denuncio todos os posts com informações falsas. Faça o mesmo e selecione bem a quem está dando engajamento. :)
A gente caminhou tanto para esse bando de ingrata não ter 1 pingo de vontade de prestar atenção no que estão falando. Tá foda.
Mas sobrevivemos períodos piores e mulheres mais reacionárias ainda. Seguimos. Vamos levando o feminismo para frente pelo verbo.
A palavra é o rio que tudo arrasta ;)
Arrasou demais, Gabi! Conteúdo de primeira e necessário.