Te escrevo porque não nos falamos mais. Não brigamos ou qualquer coisa desse tipo. A vida (ou as nossas escolhas) nos levou a realidades paralelas. Estranho isso ter acontecido quando estava morando no seu lugar favorito. Será que era esse mesmo? a memória já me falha com o tempo corrido. Faz o que? Uns 10 anos que não nos vemos? Este e-mail pode nem ser mais seu. Vou saber se retornar e se não e não houver respostas nunca irei ter certeza se foi porque você não quis responder ou se porque você não abre mais essa conta.
Seu telefone não tenho mais e se tivesse não teria coragem de ligar e acho mensagem algo impessoal demais para a nossa troca de antes que não existe mais. É preciso respeitar o que já existiu. Fomos uma dupla de dois experimentando e sonhando a vida e quando a gente vive a vida real com alguém não é elegante trocar palavras por uma tela criada para coisas rápidas e líquidas. "Você compra o pão?", "O café amanhã tá confirmado?", "A foto da Dani hoje, pronta para o inglês". Para mim celular é essa coletânea de frases, registros e resoluções. Será que para você também é?
Essa pergunta poderia provocar conversas de dias entre nós. Não entenda como nostalgia; curiosamente, sua ausência foi se tornando distante. Pode ter sido porque aconteceu no lugar que você ama e não moro mais. As coisas lá são todas aceleradas e intensas, não deu muito tempo de elaborar nosso fim. Não sei se deveria chamar de fim, amizades não têm término, não tem o encontro fatídico e nem mesmo post it para dizer adeus de um jeito ruim. O fato é que começamos a deixar de existir pouco antes da minha vinda e eu sei disso porque eu lembro de te contar sobre a mudança sem intimidade.
Foto: Sasha Kaunas
Pode ser que a gente tenha se perdido até antes e eu não tenha reparado. Na minha humilde imaginação, não fazia sentido sequer encontrar sinais de não sermos mais uma dupla. A vida seria dura demais sem você. Mas, quando a gente estava por um fio, a vida ficou dura demais com a gente sendo diferente demais para ser dois pontos juntos. Você provavelmente acha que eu recuei. "Não estava tão duro assim, você está sendo dramática". Seria sua frase se a gente tivesse tido o encontro do fim.
Sobre recuar você está correto. Não suportei tal secura e não gostaria de ter suportado. Por que então esse e-mail? Cheio de rodeios, seria seu adjetivo para ele. Porque no mês passado foi meu aniversário de 40 anos e na festa eu percebi que sua ausência, apesar de distante, ainda estava lá. Me vi rodeada de bons amigos, meus filhos, meu amor, familiares. Faltava sua presença. Ao menos uma mensagem.
Não lembro quando foi a última vez que nos demos parabéns no aniversário. Acho que foi na época dos grupos de Whatsapp e estávamos no mesmo. Te mandava uma mensagem de celebração, meio sem saber o que dizer e sentindo muito. Precisei de 10 anos para voltar a te escrever como estou fazendo agora, com meu eu íntimo exposto.
Citei filhos. Você deve saber, se me acompanha pelo mundo digital, que eu pari uma menina e um menino. São gêmeos, acredita? Eles têm 5 anos. Eu achava que você seria o padrinho deles. Sequer te conhecem. Vai ver foi olhando essa cena do meu aniversário, cheia de gente que se eu falar seu nome não sabem quem você é ou foi, que me despertou a ideia de te escrever. Um mês remoendo se escrevia mesmo e agora estou pensando se vou clicar no enviar ou não.
Me fala de você. Está feliz?
Posso ter te magoado por recuar. Passei muito tempo acreditando estar certa e ter feito o que era preciso para mim. E fiz, de certa forma. Mas, sem dúvidas falhei em algum ponto. Talvez para você as coisas estivessem pesadas por outras razões. Aí dentro poderia estar passando um tsunami. Em mim estava. A pandemia, a adultez, os sonhos se partindo no chão de um mundo na mais perfeita falta de ordem, as saudades de uma vida que não existia mais. Tantas coisas. Para você, pode ter soado como abandono. Como um término ruim de post it mas sem o post it. Essa história de post it vem de um episódio de Sex and the city (imagem abaixo), será que já conversamos sobre ele? Acho que sim e por isso me repito na referência em teoria partilhada.
Saiba que foi difícil para mim também. Se te pareceu abandono, para mim pareceu "traição". Não ao nosso elo, mas ao que a gente viveu sob princípios e valores próprios. Não consegui acreditar que a mesma pessoa que partilhava comigo a vida, os segredos e as fofocas edificantes estava se posicionando por um viés ao qual aqui chamarei de estranho. Foi como se ali, todas as nossas lembranças ganhassem um borrão.
Comecei a questionar se no dia x ou y, você tinha feito uma piada ou estava falando sério sobre um assunto importante. Ou se naquela conversa de Whatsapp de anos atrás eu tinha deixado passar um traço da sua nova, nova para mim, persona. Quando essas dúvidas começaram a se tornar realidade, nosso laço foi se desfazendo até se tornar o vazio.
Será que nos meus aniversários você lembra de mim? Data comemorativa é coisa séria e se sua memória sobre nós não foi deletada, não preciso te contar isso. Despejei algumas coisas nos parágrafos acima, não era intenção. O plano era só contar como eu estou para talvez quem sabe saber como você está. "Foda-se o plano" é uma expressão que abracei agora nos 40. Qual foi a sua? A gente precisa se dar umas liberdades quando alcança certas idades.
Foto: Kid Circus
A resolução dos 30, para mim, foi desfazer os nós que me abafavam. haha Sem ofensas. Quando nosso fim aconteceu, o jamais imaginado, eu me libertei para novos sonhos e aí foi um voo bonito de ver. Pena que você não estava lá.
Não moro mais onde você ama. Você confabulava que eu e ele - este lugar - não nos encaixaríamos. Na prática não foi bem assim. Lá, enquanto desfazia nós, reforcei laços e fiz novos. Alguns outros nós surgiram também porque a vida tem disso. Em algum momento, o ciclo se fechou e partimos para outros territórios. Cheguei a criar um roteiro mental em que moramos na mesma cidade sem saber e aí um belo dia nos cruzamos na padaria e tomamos um susto e refazemos o elo, agora mais maduros e eu sendo mais eu e você sendo mais você, ambos com melhorias.
No roteiro da vida real, definhamos a amizade. Os dois. Ainda que para você tenha soado abandono, não houve um passo seu de manutenção e esclarecimento. Com isso, entendi que o fim era nosso. Você pode até não admitir, mas foi duro para ambos.
Te escrevo com os dedos congelados de frio, sentindo uma nostalgia - agora sim - após rever fotos antigas e com o coração partido porque o plano era a gente ser uma dupla para sempre. Te escrevo porque o lema dos 40 não cabe neste plano. Foda-se o lema.
Se a gente se falar de novo, até breve. Se não, quem sabe aos 50? Espero ao menos que seu lema seja sobre ser feliz.
Um abraço,
sua amiga de outrora.
Aviso: este texto é uma obra de ficção. Representa, no entanto, a realidade de muitos brasileiros, seja com amigos, parceiros ou familiares, neste período triste de divisão nacional devido aos extremismo políticos. Torço para que consigamos reparar os danos e recomeçar.
Espero eu, agora sim, eu em primeira pessoa, que você tenha gostado desse tipo de texto por aqui. Se sim…
Clube do livro Tempo para você
É boa hora para entrar no nosso clube. Estamos começando a ler o livro do mês de novembro que é o Mais forte do que nunca, da já aclamada Brené Brown. Para assinar e saber mais, clica aqui. Segundo a própria sinopse, a pesquisadora faz a pergunta inevitável: se todos nós levamos rasteiras da vida, como certas pessoas conseguem enfrentar tantas adversidades e, mesmo assim, sair mais fortes? Para responder a isso, Brené conversou com inúmeras pessoas, coletou dados, compreendeu a resiliência e transformou esse apanhado no livro. Acredito que é um bom momento para nós refletirmos sobre o assunto por aqui e terminarmos o ano com a esperança em dia. O encontro ao vivo será no dia 27/11, um domingão, às 16h, online. Te espero por lá!
Um abraço e uma semana cheia de esperança,
Gabi
Fez bastante sentido pra mim, porque perdi algumas amizades ao longo dos anos, algumas naturalmente, pelo distanciamento natural, e outras de forma um tanto abrupta, as quais foram mais sentidas. Após o nascimento do meu filho, principalmente, me decepcionei com muitos "titios" e "titias" que tomaram chá de sumiço e nunca vieram tomar um café comigo, nem durante a licença maternidade, nem depois, mesmo com convites da minha parte. É algo que tem me deixado bastante triste e venho tentando trabalhar isto na terapia, mas tem dias mais difíceis que esse afastamento dói mais.
Essa carta poderia ser enviada para algumas amigas. Não nos afastamos por política - nem sei direito como foi - e ontem pensei muito nelas.