Todo mundo, neste momento do planeta, tem algum amigo (a) considerado (a) inteligente que fala insanidades por aí confiando cegamente em certezas comprovadamente não existentes. Não é só sobre vacinas. Engloba um tanto de temas. Negam desde a teoria da evolução até o falso liberalismo de Trump, atual presidente americano. Quando essa incoerência acontece, tendemos a questionar como fulano (a) é capaz de cometer tal asneira. Associamos a uma falha intelectual. Custo a crer nisso. Para mim, a treta é mais subterrânea e, portanto, mais lamacenta.
Há algo na nossa existência capaz de vencer qualquer questão racional: as emoções e seu pacote de dados. Estou denominando de “dados” tudo aquilo que compreende nossa formação mental como traumas, conquistas, se sentir ou não amado pelos pais, o direito à infância, ter amigos, carregar uma ansiedade administrável ou transtornos psicossomáticos, a família dá trabalho ou suporte, se consegue chorar e/ou gargalhar. A lista pode ir bem longe, somos um poço sem fundo de sentimentos e experiências.
Ainda tem quem ache todo este pacote uma grande bobagem. O Iluminismo e movimentos do gênero preferiam nos ver como corpos capazes de produzir e viver de forma mecânica e calculista. Como se fosse possível tomar uma decisão de forma puramente racional, usando um dos lados do cérebro. Uma das consequências disso foi tratar o transbordamento emocional feminino como algo bobo e excessivamente sensível. Nem homens nem mulheres são capazes de tal feito. É uma conclusão científica. Não significa que nada pode ser pensado e avaliado com base no razoável. Somos capazes de ponderar, mas haverá a influência das nossas experiências de vida e trabalho. Esta constatação não faz o momento histórico iluminista perder seu valor, é só um lado B. Naquele momento, o contexto era de uma ruptura religiosa e o caminho da intelectualidade puramente fazia sentido.
Voltando às emoções e ao século XXI. Podemos, por exemplo, escolher tomar um sorvete de doce de leite caprichado ao invés de um pote de frutas frescas mesmo ponderando as duas opções e estando ciente da própria taxa de glicose alta. O mais racional seria optar a opção saudável, mas o desejo de doce pode vencer. Ou mesmo o estresse daquele dia específico é capaz de nos levar a uma espécie de recompensa. Portanto, nem sempre uma decisão é sobre inteligência ou falta de conhecimento intelectual e informativo. Seja sobre doces ou sobre votos.
Dito isso, volto à questão internet, IA e redes sociais e as crises associadas a todas. É uma discussão de diversas camadas, por isso me antecipo e deixo claro que defendo o não uso da maioria dos aplicativos por menores de idade e a regulação de ferramentas. E enxergo este caminho como parte da solução justamente porque não há como controlar o comportamento humano, menos ainda dos jovens, partindo da premissa da racionalidade.
No entanto, observo muitos debates direcionados ao algoritmo, a máquina, as coisas mais palpáveis desse novo tempo e pouco avaliativos sobre o que nos leva a usar tudo isso de forma compulsória. A gente resolve a disseminação de fake news apenas derrubando os perfis que as disseminam ou também tentando diminuir o número de influenciados? Acredito que é preciso utilizar as duas coisas. Sem plateia não tem espetáculo.
Quando creditamos “burrice” no comportamento de quem segue este tipo de conteúdo e insistimos que a solução é entregar a ela mais informação comprometida, além de afastar a pessoa porque ninguém lida bem sendo chamado de burro, esquecemos da complexidade da matéria humana. Excluindo os que são adeptos de discurso de ódio e da pura maldade - eles existem, infelizmente -, quem está sendo levado por essa onda, na minha visão, são as pessoas em busca de preenchimento e pertencimento.
Os líderes dos discursos da insanidade encontraram nas redes sociais um espaço para semear sementes; o solo digital é fértil. Quem ajuda a regar isso só queria uma explicação, ainda que vazia, para toda merda de vida que estavam vivendo. Cumpriram todo protocolo social, ou quase todo, e nada demais aconteceu. Não ficaram ricos, os casamentos não foram necessariamente felizes, os filhos deram trabalho demais e nem sempre cumprem a promessa de felicidade prometida da parentalidade. O mundo avançou tecnologicamente e mesmo assim o cenário dos Jetsons1 e da prosperidade não engrenou. O clima é de frustração para essa fatia.
E enquanto tudo isso acontecia nas paredes das suas casas, havia algo evoluindo para minorias. Nada demais também, mas para quem vê a grama de fora tudo parece sempre verde. Pessoas negras entraram nas universidades, casamento entre pessoas do mesmo gênero foi aprovado na justiça, mulheres começaram a ganhar mais dinheiro e, por consequência, trabalhar mais etc. O número de ressentidos foi aumentando.
Alguns anos se passam e essas minorias também começam a questionar quando irão ter o retorno do esforço entregue. Estudaram como era exigido pelo mercado, trabalharam, se empenharam, ocuparam as ruas e alguns até se enquadraram no que a sociedade achava mais bem visto - leia-se alisar o cabelo e não ser tão gay assim - e mesmo assim pouca coisa mudou. Um desgosto se instala nesta outra fatia.
Todos esses, instruídos e trabalhadores, muitas vezes vítimas de assédios em seus locais de trabalho ou relacionamentos e também de preconceitos variados, carregam a sensação de não serem escutados. Eles querem mais. Nem sempre porque o capitalismo nos impulsiona desejos consumistas, mas por terem uma rotina mediana sem direito nem de ficar doente e ter um médico para mandar mensagem no Whatsapp. Quem os salva, muitas vezes, é o Google. Querem viajar um pouco, distrair da robustez da vida prática. Tomar um sorvete sem tanta gordura hidrogenada. Deixar o filho tomar banho quente no inverno e comprar um ar condicionado para o verão. Não precisa da mansão greco-goiana do Gusttavo Lima. É sobre viver com dignidade.
Esse buraco, na fatia frustrada, se junta a uma raiva de quem parece estar tomando seus lugares: as minorias; isso é um sentimento comum nos grupos anti-imigrantes em países ricos. Já a parte com desgosto traz a sensação de ser enganado. E quando tantas mudanças culturais se reúnem em meio a essa dor, o passado parece muito atraente. Não importa se a pessoa leu 1984, do Orwell, se fez mestrado em História, se frequentou cursos na França ou se a avó foi salva pela vacina da covid. Toda essa racionalidade fica para trás quando o problema dela não é puramente prático.
O discurso de um fulano nas redes sociais dá a mesma vibração nessa pessoa que a cocaína entrega para quem está buscando adrenalina. É a cura rápida. Alguém - ou algo - está prometendo tirar dela a impotência. Que delícia, não? Quem não quer este prato entregue assim de mão beijada? Para aceitá-lo facilmente, sem nem questionar os meios, tenho de reconhecer que quem cai na ladainha já tem um certo desvio de caráter. Pode estar introjetado neste ser algumas crenças da nossa cultura como o “topa tudo por dinheiro” que não à toa era o nome de um programa de televisão no canal SBT apresentado por Silvio Santos, um dos maiores comunicadores do Brasil e dono da emissora.
Por outro lado, posso garantir, por experiência de convívio, há quem seja um mortal comum, sem grandes ambições, carregando seus perrengues emocionais e também caindo nas promessas dos discursos infundados. Por isso e por tudo que já falei, enxergo nossa crise como algo muito além da internet e de qualquer questão relativa à falta de intelecto. Talvez eu esteja errada ou todos nós estejamos um pouco certos, mas me parece que a solução com melhores resultados virá do campo emocional e afetivo. Os terapeutas teriam bastante trabalho, necessitaríamos de uns bons anos porque esse processo não é simples e seria bom, obviamente, encontrar formas de cura para além da sessão de psicologia. Nem todo mundo toparia se questionar, mesmo sem pagar.
Falta, então, o lado menos pertubado dessa história encontrar um discurso de acolhimento tão promissor quanto o do lado opressor? Não quero jamais pôr a culpa em nós, os buscadores de um pouco de paz e equilíbrio climático. Somos todos vítimas nessa confusão. Só que se o desejo é resolver, precisamos arregaçar as mangas porque me parece, só parece, que os líderes de lá estão a todo vapor dominando os vazios alheios.
Notas sobre o tema
Imagino que muitos de vocês assistiram a série Adolescência, no Netflix, e foram arrebatados pela dor de toda família protagonista. Muito já foi dito sobre a obra e não quero repetir o já dito. Trago, então, dois pontos que me pareceram se perder nas análises. O primeiro é sobre o personagem Adam Bascombe, filho do detetive Luke Bascombe. Ele representa a juventude que ainda está viva e é pouco ouvida. Um menino com dificuldades de socialização e em uma escola claramente sem estrutura acaba sendo “visto” pelo pai apenas no meio da confusão do crime. E o segundo ponto é a solidão da família Miller, a falta de interesses fora dos deveres tradicionais como trabalho e escola, os desencontros entre os membros na rotina. Não é suficiente, nem nunca foi, ser apenas bons pais e boas pessoas para criar seres humanos. A presença é valiosa e ela vale para meus dois apontamentos. Quem é a pessoa que mora com você? Um mero colega de quarto ou divisor de contas pode passar despercebido, mas quem divide a vida conosco merece mais do que comprimentos rasos. O gatilho da série é emocional e os vazios de todos ali representam o que busquei explicar neste texto. Muitos seres humanos, especialmente da geração mais nova, se sentem sozinhos e além de doenças como depressão e outros transtornos, o resultado disso é buscar consolo nos discursos maléficos do território digital.
É sobre isso:
Quantas pessoas desta geração poderão escrever assim sobre seus pais no futuro? Adoro os textos da
por sinal e o refresco que ela traz no olhar sobre a vida e a família.Na terceira temporada da série The White Lotus, no Max, tem um núcleo - meu favorito - de três amigas viajando juntas. Cada uma com suas questões pessoais, mas uma delas, a Laurie, está claramente frustrada e se sentindo aquém das outras duas. Além da comparação entre elas, há uma diferença clara de valores entre as três que se conhecem desde a infância e são adultas diferentes das meninas do passado. Se tornou o destaque para mim porque colocou na mesma mesa a diferença, a amizade e os egos e fecha com chave de ouro com o tema convivência e o clássico do roteiro das outras duas temporadas: todo mundo tem teto de vidro e ninguém é 100% puro. Apesar de não ser sobre a internet em si, dá para refletir sobre as polarizações trazidas por ela e sobre como esses conflitos influenciam a solidão da vida real.
A força monumental que é colocar um ser humano no mundo não deveria ser derrubada por cumprir tarefas.
Boa semana por aí e com menos solidão. Aproveitem e tentem ouvir os muitos lados envolvidos nesta crise instalada.
Beijos,
Gabi
ps: este texto faz parte de um envio programado para suprir o meu período de pós parto. :)
Obrigada pela carinhosa indicação do meu texto, Gabi! Seguimos juntas por aqui, uma honra pra mim, um beijo.
Reflexão e ponderação que esclarecem pontos obscuros daquilo que poderia ter sido e não foi. A Internet apenas escancara os desvios de comportamentos que muitos insistem em não considerar como presença viva.
Como se o virtual não ferisse. Lidar com as frustrações fazem parte do desenvolvimento humano seja qual for o espectro.