A ausência da presença
Está nos lugares mais óbvios e menos imaginados. Está nos detalhes. Será que você consegue ver?
Não está apenas nas fotos do mercado financeiro, nem só na Faria Lima. Não está apenas nos radicais conservadores que, inclusive, insistem em negar os fatos. Não é exclusividade dos eventos de tecnologia.
Está também nas festas com músicas do Chico tocando ao fundo. Está nos eventos de bem estar, yoga e beleza limpa. Está, surrealmente, em blocos de Carnaval. Nas equipes dos jornais. Está nas revistas com capas legais que você compra. Está no que você enxerga como beleza. Está nas pessoas que você segue no Instagram. Certamente, também está em você.
Mais dicas para você adivinhar. Não é uma coisa inteira. Não é presença. O que está em todos esses exemplos que citei é ausência. Já acertou? Não? Tudo bem, vou explicar um pouco mais.
Recentemente duas imagens me arrebataram nas redes sociais. Uma delas era de um evento de uma marca de cosméticos com a proposta orgânica e "limpa". O encontro envolveu bate-papo, aula de meditação e apresentação de produtos. Tudo para uma lista de convidados, como costuma ser e tudo bem. O problema era que todas as pessoas reunidas para o clique eram harmônicas. Cor da pele, cabelo, sorrisos e, até mesmo, as roupas.
A outra cena surgiu de uma ótima proposta para pensarmos sobre as influências dos padrões de beleza nos nossos corpos nos anos 1990/2000. O conteúdo era maravilhoso, mas as imagens nos fizeram constatar uma coisa: todas as mulheres representadas eram brancas. Além da cultura da magreza excessiva e do controle estético, também foi instalado ali que beleza era exclusividade de gente branca.
Agora já entendeu?
Gasto e, ainda assim, não existo
Procuro cores de batom para diversificar a maquiagem e sofro para encontrar um que harmonize com meu tom de pele. O mesmo ciclo se repete para blush. Uma marca, orgânica e fofa, não tinha sequer uma foto dos seus itens com pessoas não brancas até o ano passado. A gente se engana dizendo que é melhor porque não gastamos dinheiro com “bobagem”. Não ter acesso quase soa como positivo. Mas, é só quase. O sofrimento de não pertencer sempre vence.
Se mal existe maquiagem, outros cosméticos são ainda mais escassos. Cuidados com a pele e manchas nos ofertam alto risco de erros. Muitos médicos dermatologistas sequer sabem o que fazer e indicam produtos que pioram ao invés de resolver. Inúmeras cacheadas e crespas, incluindo eu mesma, passaram pelo alisamento dos fios, há alguns anos, porque simplesmente não havia produto nas prateleiras para os vários tipos de cabelo.
Recentemente, pessoas negras passaram a ter mais acesso a capital e, assim sendo, abrem negócios com produtos que atendem este público, criam marcas diversas e revolucionárias como a da cantora Rihanna que tem mais de 20 cores de base facial. Ainda que as rejeições para empréstimos e investimentos sigam mais altas para mulheres e negros, o mercado investidor precisou se adaptar. Afinal, só no Brasil pretos e pardos somam 56% da população, segundo dados do IBGE. As mulheres negras movimentam cerca de R$704 bilhões por ano, de acordo com um levantamento do Instituto Locomotivas, solicitado pela Folha de S. Paulo.
Nesta mesma pesquisa, realizada exclusivamente com pessoas não brancas, foi constatado que 89% das mulheres gostam de produtos que melhoram a autoestima e 83% afirmam que não se identificam com quem está nas propagandas publicitárias. No fim das contas, nós literalmente pedimos para gastar. Só falta o produto nas prateleiras. Fora das fotos de pessoas iguais, tem um público consumidor enorme sendo ignorado. A rejeição à diversidade empobrece e adoece.
Bem estar e saúde, para quem?
Cada vez mais pessoas pretas, pardas e indígenas entram nas universidades - efeito das cotas raciais - e isso é ótimo. O resultado na prática leva tempo, por isso conto nos dedos os profissionais de saúde que me consultei e não são brancos. Minha osteopata, em São Paulo, faz parte da raridade e já me relatou os comentários insanos que ouviu. Por usar turbante, por ter quadros com pessoas negras nas paredes, por priorizar profissionais negros na sua clínica.
Esta realidade somada ao racismo entranhado nas decisões médicas de todos os dias leva a população negra a ser massacrada em diversas esferas da saúde pública e privada. Um exemplo disso é o resultado de uma pesquisa nacional da Fiocruz realizada em 2014 sobre raça e atendimento. As mulheres negras enfrentavam um risco 50% maior do que as mulheres brancas de não receberem anestesia durante a episiotomia (corte no períneo feito para facilitar a passagem do bebê no canal do parto), inclusive em partos pagos.
"Pretos e pardos no Brasil apresentam maior mortalidade por praticamente todas as causas quando comparado aos brancos e, consequentemente, menor expectativa de vida e pior autoavaliação de saúde. Essas desigualdades são absolutamente desnecessárias, evitáveis e injustas e, portanto, devem ser interpretadas como iniquidades.", trecho do artigo Racismo e iniquidade racial na autoavaliação de saúde ruim (2021), publicado no Cadernos de Saúde Pública (Reports in Public Health), por múltiplas autoras.
O racismo também debilita a saúde mental das vítimas. Segundo uma análise do Ministério da Saúde brasileiro e da Universidade de Brasília (UnB) a cada dez jovens que se suicidam, seis são negros.
As famílias pretas e pardas vivem a tensão e o medo com muito mais intensidade do que as brancas. Uma mãe de um filho preto não tem sossego nem com o filho na universidade. Suas crias estão sempre ameaçadas seja pela violência urbana seja pelo abuso psicológico. O que não me surpreende, mas deveria, é que as campanhas públicas - quando existem - de saúde mental não são voltadas para este público.
Alienação em lótus
"...o reconhecimento da dimensão subjetiva de sofrimento pela impossibilidade de se sentir fazendo parte da sociedade traz para os grupos e indivíduos, como condição universal, um sentimento de incapacidade e fracasso.", escreve Rosana Tavares, pesquisadora da Universidade do Tocantins, no artigo O sentimento de pertencimento social como um direito universal (2014).
Vivenciar o bem estar ignorando a diversidade é como fingir que faz musculação e esperar os músculos crescerem. Mesmo a sensação de satisfação individual e pessoal é afetada pelo contexto social. Meditar, comer bem e fazer exercício não eliminam o fato de você não conviver com pessoas diversas, exceto nas funções que te servem.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o conceito de bem estar envolve um ambiente que respeite e proteja direitos básicos civis, políticos, socioeconômicos e culturais. Reconhecendo que nosso país não tem esse feito, já podemos concluir que ninguém está de fato saudável. O que não impede, claro, quem tem o acesso poder usufruir. Pelo contrário, deve. Desde que a posição de lótus não te leve para um lugar de aceitação da exclusão.
O estranhamento das imagens plastificadas, da beleza exclusivamente branca, da frequência ao seu redor ser padrão não pode ser apenas das pessoas que estão de fora da dança. O racismo também está na inércia. Em não conversar com pessoas diferentes, não ouvir suas histórias, não querer saber das "suas dores".
A atriz americana - e agora princesa do Reino Unido - Meghan Markle divulgou suas queixas e angústias sobre ser negra na família real britânica via entrevistas em vídeo, em textos e em declarações. Aqui no Brasil - aparentemente no Reino Unido e em outras regiões também - o que não faltou foi um "tapar de ouvidos" e críticas como se ela estivesse lavando roupa suja familiar em público1. As pessoas não querem saber porque incomoda. Se dói ouvir, imagine viver.
As festas regadas a Chico Buarque
Não há dúvidas de que nos ambientes progressistas se vê mais diversidade. As equipes de empresas de comunicação, ONGs, artes e afins tendem a representar mais o que é o Brasil {ainda não o suficiente}. Neste momento, as três novelas noturnas da Rede Globo têm protagonistas negras. Há um esforço e há resultado.
No entanto, quando observo os feeds e vídeos pessoais de quem verbaliza estar a favor da defesa de minorias, ainda conto nos dedos as pessoas negras. Aniversários, blocos e bailes de Carnaval e festas varam a noite com mãos iguais sem soltar uma da outra. Não tira de ninguém o interesse genuíno por resolver as desigualdades. Mas, bem intencionados ou não, o retrato é também da exclusão.
"Todo dia ela faz tudo sempre igual…", Cotidiano (1971), Chico Buarque que não tem nada a ver com essa confusão diretamente, mas é símbolo da música progressista por ter sido exilado na época da Ditadura Militar no Brasil (1964 - 1987). Se tornou também muso da geração, olhos claros, claro.
Sou bonita, mas estou cansada
Antes mesmo de saber o que era racismo na vida real, eu o senti. Quando tinha 13/14 anos, ouvi inúmeras vezes que eu era bonita só de corpo, de rosto era a colega de traços caucasianos. Cresci achando que não era possível ser negro e belo e, portanto, olhando meu rosto como algo a ser consertado. Também não sabia que dava para ser escritora, artista ou ganhadora de Nobel tendo cor escura.
Perdi meus avôs, ambos negros, muito cedo. Éramos muito próximos, apesar do pouco tempo juntos, e mesmo assim a minha cabeça de menina não registrou o rosto deles. A memória era borrada. Há um ou dois anos, vovó colocou no grupo da família a foto dele. Fui arrebata naquele dia pela beleza daquele homem. Pouco depois, vi uma imagem do meu outro avô e foi a mesma reação. Se os olhasse na infância, poderia ter tido outra percepção devido às concepções de beleza permeadas pelo racismo.
Não sou toda resolvida, como nenhuma mulher é nesse mundo padronizado. Só aprendi a reconhecer: sou bonita. Mas, olha, não tem beleza que resolva meu cansaço. De ser a única em muitos lugares e saber o quanto isso é grave não só pela minha solidão, mas por não ver negros retintos ao meu redor. Eu ser sozinha é muito pouco e não é nada perto do real problema.
Estou tão cansada que quase distribuo raiva nos comentários de certos posts das redes sociais. Me contenho. Não vou contribuir com essa imagem da preta raivosa. Meu protesto é estar presente, estar bem, estar aqui informando com todas as letras. É incomodar por ser quem sou onde estou.
Notas
Denúncias de racismo, seja na família real ou na sua família ou no seu trabalho ou na loja do shopping, não são equivalentes a lavagem de roupa suja em público. Racismo é um crime. Não julgamos quem denuncia abusos e violências sofridos, mesmo em casos familiares, por exemplo. Portanto, repetir essa falácia também é um ato racista.
Sugestões complementares:
Artigo na renomada revista científica The Lacet: Medicine and medical science: Black lives must matter more
Reportagem da revista Veja Saúde (julho/2020): Racismo faz mal à saúde.
Perfis de mulheres negras para seguir no Instagram: Lare, Gabi de Pretas, Maria Carolina, Josy Ramos, Karla Lopes, Oliver Tai, Cecilia Boechat, Lais Franklin, Luanda Vieira e inúmeras outras. Para ninguém dizer que não chamou porque não tinha quem!
Enviei a edição na quarta por causa do feriado festivo. Curtiram? Espero que sim.
Uma semana de reposição de energia, de preferência com gente diversa.
Um beijo,
Gabi
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Gabi (comentando atrasada porque acumulei um mês sem ler as news),
que texto necessário e importante, especialmente para que a gente, como pontuou a Lalai, consiga refletir e se observar sob esse papel privilegiado. Algumas passagens já são muito nítidas. Li o livro do Harry e me choco como alguém ainda não percebe do que se trata. Ainda temos muuuuito o que caminhar, então eu só te agradeço por usar sua voz para trazer a reflexão. Deveria ser (e um dia será) muito óbvio, mas a real é que ainda não é...
Gabi, você deu exemplos certeiros e me fez pensar em muita coisa, nos muitos círculos que me cercam