No cardápio de bebidas alcoólicas meus olhos capturaram uma taça de pinot grigio1. Nem estava na minha intenção beber nada, mas caiu em minhas mãos e pareceu um convite. Gosto dessa uva, nem sempre tem por aí. Pedi. Assim como um filé de tilápia com salada e chips de batata doce roxa. Dividi a mesa com meu marido que não quis nada além de água com gás e limão, como de costume pensava no treino. Para comer, ele repetiu a sua querida empanada com salada caprese. Somos desses que saem para comer e pedem coisas saudáveis, desde que deliciosas.
Enfim… o pinot grigio chegou gelado e esplendoroso como deve ser. Quando senti na língua, fui ao céu. Me pegou de surpresa dado a raridade desse tipo de acerto na temperatura e pela descoberta de uma garrafa das boas.
Obriguei o marido a provar. Ele também sentiu o deleite. A noite seguiu entre os goles do vinho que é branco mesmo a uva, a grigio, sendo escura, e as garfadas do meu prato que casou perfeitamente com aquele frescor. Nessas horas, tenho certeza que é bom ser humano e ter todos os sentidos aguçados. Explico, sou uma glutona nata. Dizem ter relação com o signo de Touro, tendo a dar razão. Tenho apreço por todos os prazeres desta Terra e a comida, o vinho e outros drinks, quando bem produzidos, me deixam no humor perfeito. Já quando a sensação é de decepção, não recomendo minha companhia.
Comer, afinal, não é só matar fome. Aprendi isso quando provei quitutes ainda criança e também ao passar horas da minha juventude acompanhando programas de receitas dos mais básicos como Ana Maria Braga aos mais elaborados dos canais de TV a cabo, como o da britânica Nigella. Meu pai também ama, então além de assistirmos, conversávamos - e assim segue - sobre os ingredientes, as combinações, os sonhos de ir em tal e tal restaurante.
O tal jantar do deleite foi no Zazá Bistrô Café3, na livraria Travessa do shopping, no Rio de Janeiro. É dos poucos lugares que vou comer com alegria mesmo sendo dentro de um centro de compras fechado. Ele fica numa "varandinha" dentro da loja e isso me dá a vista perfeita dos livros nas prateleiras. Além, claro, do ótimo cardápio. Também gosto de ir na versão Bistrô Tropical4, em Ipanema, numa esquina charmosa e arborizada. Lá, tive experiência semelhante a da taça do pinot grigio, mas nesse caso com um prato.
Vou contar porque este texto, como podem ver, é sobre comida e logo mais, irão notar, será também sobre cinema. Chegamos no Zazá Ipanema com fome e era tarde para nossos padrões. Decidimos dividir um prato. Meu marido é vegetariano, então pedimos um descrito como "vegetais grelhados" e uma salada crua com beterrabas assadas, sem grandes expectativas. Na garfada dos tais vegetais com húmus cor de rosa e ovo mollet me senti maravilhada e encantada com o que se pode fazer com um prato veggie. Brilhantismo e nada mais. A salada também estava ótima. Faz uns meses desta descoberta e sigo repetindo quando vou lá. Não falarei das sobremesas hoje, fica para a próxima.
Recordei esses momentos de sentir o pé flutuar através da comida porque na noite seguinte a taça de pinot grigio, fui ao cinema em minha própria companhia, para assistir o filme francês O sabor da vida (2024). Sabia das indicações a prêmios, da presença ilustre de Juliette Binoche, dos elogios e ainda assim não estava pronta para aquelas cenas. Uma sucessão de pratos produzidos lentamente com ingredientes naturais, colhidos na hora, e cheios de etapas com cada detalhe sendo pensado. Há muitos animais sendo cozidos também, aviso de antemão. Veggies, deem desconto, são franceses em 1885.
Me emocionei em inúmeras cenas com a forma como a cozinheira Eugene e o chef Dodin tratam suas refeições. Um mero café da manhã ganha ares especiais com a omelete no ponto, de comer com colher, e a felicidade compartilhada à mesa. Ambos trabalham juntos, moram na mesma casa em quartos separados, partilham a vida e o amor de uma forma bonita de ver. Ele louco pelo casamento, ela fugindo por medo de perder a liberdade. Preciso comentar, sem querer ser etarista ou mais uma falando de corpos femininos, mas Binoche aos 60 segue uma diva.
O filme é sexy, untuoso, prazeroso e, inicialmente, silencioso. Senti meu corpo inteiro vibrar de satisfação mesmo com um casal pra lá de chato ao meu lado. O roteiro e a direção, do vietnamita Anh Hung Tran, têm o toque, com forte influência francesa, que é quase como fazer amor com o filme. Para completar, o cenário nos leva a uma França campestre do século retrasado, cem anos depois da Revolução Francesa, onde somos arrebatados por uma simplicidade exuberante. São adjetivos dos quais não costumamos juntar na mesma frase, não tenho outra escolha senão provocar este encontro. É exatamente como consigo descrever a região do Loire, onde tudo foi gravado.
- Os humanos são os únicos animais que bebem sem sede, graças ao vinho, diz um dos amigos em um jantar.
- O vinho é a parte intelectual da refeição, o outro responde.
Não consigo decidir se a melhor parte é a que o único som é o dos talheres e panelas ou os diálogos de todos os envolvidos - amigos do casal e convidados - comovidos pelo talento de Eugene e Dodin enquanto provam seus cardápios pensados cuidadosamente para combinar com as bebidas. Aliás, destaque para Pauline, uma menina de 13 anos, que ajuda a cozinheira por um dia e ao provar seus quitutes desenvolve o paladar e o interessante pela culinária/gastronomia (como queiram chamar).
Voltei para casa flutuando, sem nem notar os barulhos cariocas costumeiros, e louca para cozinhar. No domingo, seguia solamente comigo, aí decidi me mimar e usar a energia do filme a meu favor. Comprei um pinot grigio2 próprio, coloquei tomates cereja no forno com azeite e orégano a sal - gostaria de manjericão, não tinha -, cozinhei um espaguete - obviamente sem glúten pois é o que posso -, tirei o tomate e misturei na massa com um pouco de molho de tomate caseiro e lutei bravamente com a garrafa do vinho para tirar a rolha. Venci a batalha. Inclusive, mereço de aniversário um abridor de garrafas automático. Fica a dica. haha Tudo isso enquanto ouvia uma trilha sonora que faz a gente fechar o olho e rodopiar. No prato, macarrão a postos, parmesão ralado na hora. Quando sentei para comer, estava tocando "we could be so good togheter", do George Michael, na versão do Yusei (confira logo mais abaixo).
Na minha garfada própria, respirei e pensei: nossa, como eu sei viver (e comer).
Notas:
1O vinho em questão era o Mannara Pinot Grigio Terre Siciliane 2019.
2Este, comprei no mercado e faz um bom papel apesar de estar abaixo do anterior é o Berteletti Castelia Pinot Grigio e vem do norte, região de Vêneto.
3Esta versão do Zazá está em algumas livrarias Travessa no Rio. A minha vista preferida é a do Shopping Leblon.
4O restaurante de Ipanema tem cardápio diferente da versão café, apesar de alguns pontos de encontro. Ambos incluem drinks com e sem álcool e pratos veganos e vegetarianos.
ps: não fui paga para citar o restaurante e não se trata de publicidade.
Extra extra: Ainda sobre comida e sobre Juliette Binoche, a atriz também está no filme Chocolate (2000) onde faz uma mãe solo forasteira que produz chocolates numa cidadela francesa em tempos antigos - não tem determinação do ano. O doce causa rebuliço por ser considerado satânico, dado seus efeitos, pelos religiosos locais. Fica como recomendação extra para um fim de semana no sofá.
Uma semana deliciosa para vocês. Começamos maio com gosto de prazer como não poderia deixar de ser.
Um beijo,
Gabi
Que texto delicioso, literalmente 😅😋
Ah, os prazeres terrenos! Delícia de news.